Demorei
28 anos para conseguir me entender com a solidão.
Penso
isso enquanto leio O ano em que morri em Nova York. Nele, a narradora conta
que, quando era pequena e dormia fora de casa, era acometida por uma sensação
de angústia tão forte que precisava ligar para a mãe ir buscá-la. Eu era
exatamente essa criança.
Entre
todas as pessoas amadas, só uma tinha o poder de reorganizar o meu mundo, que
se desorganizava muito fácil. Não é a
minha cama, não é a minha casa, não é o meu pijama, não é o meu leite com café
na mamadeira. Tudo isso e mais o resto que eu inventava queriam dizer só
uma coisa: não é a minha mãe.
Pior
do que no romance, eu cheguei a fazer o meu pai dirigir 550 km na véspera de
Natal, num bate e volta para chegar a tempo para a ceia, só para me trazer até
minha mãe, para minha cidade, para minha família quebrada, mas mesmo assim tão
minha. Lembro de chegar e dizer, talvez pela primeira vez, o quanto eu amava a
minha avó materna e o quanto eu tive saudades dela nessas pouco mais de 24
horas em que eu estive fora. Ela não era
dos arroubos de demonstração de afeto e eu, mesmo sem querer, seguia essa regra
muda à risca. Nesse dia, achei que era uma bom momento para quebrá-la.
Meus
sintomas longe da minha mãe eram o que talvez hoje chamem de uma crise de
ansiedade. Falta de ar, dor no peito, choro compulsivo. Eu não queria nada. Nem
praia, nem Natal, nem a outra avó, nem uma família gigante. Eu queria ela.
“Voltei
à cena corriqueira da infância, quando tentava dormir fora de casa, me sentia
sozinha e ligava para ela me buscar. A sensação de aconchego que experimentava
ao vê-la chegar e saber que ela me levava de volta para casa é aquela que ainda
persigo”, Milly Lacombe escreve em seu livro.
Eu
não teria escrito diferente.
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Weronika Anna Marianna |
A
minha mãe era a minha não solidão; minha eternidade. Uma espécie de deusa viva
que não morreria nunca. E eu tinha certeza disso, mas, por via das dúvidas, em
um dia que ela me deixou mais tempo que de costume no carro para ir ao mercado,
o que me causou uma sensação de que não era possível viver tantos minutos assim
sem a sua presença, pedi a Deus para que, por favor, eu morresse antes dela. Eu
tinha seis anos.
Essa
travessia para longe de suas trompas, de seus ovários, de cada pedaço de útero
que ainda existe e que algum dia já fora minha casa, foi travada a duras penas
em uma guerra de quartos, camas e porta-retratos.
Eu
sentia que era preciso ir para longe, muito longe, para conseguir existir sem
os olhos dela. Aqueles olhos tristes que herdei. Caso contrário, eu falharia.
E, já adulta, ligaria no meio da noite, pedindo socorro, correndo para sua cama
com medo de fantasmas, monstros inventados, números repetidos. Ela então me
socorreria e ficaria tudo bem. Até que eu precisasse novamente de socorro no
outro dia e no outro e também em mais um. E em todos eles ela estaria ali.
Demorei
28 anos para conseguir me entender com a solidão e quando parei de olhar para
ela e olhei para mim, vi que que não estava sozinha.
Mãe
é mar.
E o
que eu julguei mar aberto, ameaça mortal quando eu ousasse sair da margem, era
areia firme se eu parasse de me debater e só pisasse com meus próprios pés.
Aquele
território lamacento e úmido, quente e protegido, sem o qual eu não conseguia
respirar, na verdade era o mangue com o qual eu me nutri por todos esses anos
para descobrir no meio do caminho que andando de lado também se vai longe.
Às
custas de um diário de 1999, dezessete caderninhos, anotações no bloco de notas
do celular, lembretes no canto da agenda e quatro anos de análise lacaniana, construí
meu próprio barco para descobrir depois de pronto que a terra firme já era ali.
Precisei
que morresse em mim a mãe que eu criei para que pudesse nascer uma mãe humana,
falha, mortal; para que eu também pudesse experimentar a minha humanidade, as
minhas falhas, os meus lutos.
Nessa
travessia além útero, descobri que precisei desconstruir certezas para entender
que sina é desejo e nada mais.
Da
necessidade do outro, me fiz e me atravessei.
Construí
um teto todo meu no pequeno apartamento e construiria outros mil tetos em
qualquer lugar em que eu pudesse ser.
Entre
as minhas paredes, descobri que gosto da minha própria companhia, que é bom
ficar um pouco em silêncio, que o cheiro do incenso de lavanda é o meu preferido,
que sei cozinhar coisas deliciosas, que adoro lavar roupas, que cuido bem de
plantas (mas as avencas ainda são um desafio), que colocar luzinhas em cada
canto me dão a impressão de que moro com as estrelas e que não sou tão
angustiada quanto fantasiei que eu era. Entre as minhas paredes, prometi para
mim que não há lugar, físico ou subjetivo, que eu me diminua para me fazer
caber.
Tive
que ficar sozinha e me entender sozinha, fazer as pazes com o tempo, com os
ciclos e com as faltas para aprender que o meu desejo é ser eu para poder
também ser o outro. Ser com o outro.
Nós
somos a partir daqueles que foram antes de nós. Nós existimos a partir do
outro.
Depois
de tanto girar, nessa ciranda, gosto mesmo é de ficar de mãos dadas.
Porque
quero, não porque preciso.
Sou
dada à companhia, ao afeto, à memória, aos assuntos do coração, às amizades,
aos bilhetes, às cartas de amor.
Saturno
já deu a sua primeira volta e foi preciso olhar de perto as cicatrizes para
reaprender a amar e ser amada.
Quase
dói, mas é também bonito.
E
sei que, nesse teto ou em outro,
Aqui,
Comigo
ou
com você,
Não
importa:
Estou em casa.
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Lady Bird |