Sobre a cama vazia e o andar dos dias

Amores não se esforçam. ( Fernanda Young em O pau, p. 30)

Acostumei tanto com a sua falta que ando aceitando como natural o vazio na cama e no coração. O lençol continua no lugar, o travesseiro repousa tranquilo sob o rosto. O andar dos dias é calmo. Quando você não está aqui, tenho toda a liberdade em escolher qual filme quero assistir - o que é ótimo, já que você tem uma mania insuportável de querer ditar quais filmes iremos ver juntos. Você escolhe sempre aqueles a que já assistiu três vezes, mas quer muito que eu também assista - mesmo que eu não o queira. Além disso, você fica velando minha atenção pra que eu não tente nem por um minuto cair naquele sono que costuma chegar loucamente quando assisto a um filme com você.  E é engraçado, porque eu nunca durmo quando assisto a um filme sozinha. Com você, os primeiros 5 minutos são um convite ao recostar da minha cabeça sobre seus ombros. Nos próximos 10 minutos eu já dormi.
Ando ficando bastante acordada. Leio livros dos quais pouco tenho gostado, passeio com o cachorro, assisto programas de televisão dos quais você não gosta.
Como eu dizia, está tudo bem comigo e com o andar dos dias. Continuo sem concentração e teimando em ignorar as coisas que tenho que fazer. Ainda não aprendi a controlar os gastos, ando mais viciada do que nunca em caderninhos de anotação, coloco o despertador para tocar cedo mesmo sabendo que vou desligá-lo assim que começar a apitar. Pensei agora que é isso que tenho feito nos últimos anos: desligando o despertador mesmo sabendo que tenho que acordar. Ou que devo acordar, não importa. Minha garganta ainda dói, a família vai mal, como sempre. No criado-mudo ainda tem uma foto nossa, sim. 
Você me procura, eu recuo. Eu te procuro, você recua.
A quantas conversas francas resiste um relacionamento? Não era essa a pergunta?
A quantas qualquer-coisa resiste um relacionamento?
Então repito: está tudo bem comigo, com a falta, com o meu desejo de ir embora, com a vontade no meio das pernas, com o medo de não ser o que eu quero ser, com o arrepio na boca do estômago, com a saudade que ainda existe apesar de tanto tempo. Tempo, esse inimigo de cordas e ponteiros. 
Em que momento as coisas se perderam?
Mas ainda existe Nina Simone no vinil, o cigarro com gosto mentolado que você detesta mas compra porque eu gosto, o sexo que vem pra atestar que ainda há algo vivo no meio de tanta coisa que cala. Há ainda algo vivo no meio de tanta coisa que cala? Não importa. Está tudo bem, digo. E quase acredito. 

O amor acaba?


Uma das crônicas mais bonitas da vida: 

O amor acaba - Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.



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