Instruções para fugir

Fugir exige talento, habilidade e um desejo incontrolável de fazer coisas banais. Eis aqui algumas instruções:

Apontar todos os lápis do estojo, inclusive os jogados na gaveta, presos no meio dos livros, perdidos entre as prateleiras. As prateleiras, aliás, são uma ótima coisa para se perder sem limites. Quando usadas para organizar livros, sugiro a arrumação primeiro por nome de autor, depois sobrenome, depois título. Quando tudo parecer ter um fim, uma boa ideia é separar por tamanho de exemplar ou mesmo cor de edição - duas opções que rendem muito, principalmente àqueles que possuem um leve transtorno obsessivo compulsivo. Uma outra ideia - que é a minha opção preferida - é separar os livros de modo tão aleatório e absurdo que precisará de horas posteriores à arrumação para entender a própria lógica.
Caixas de bis ajudam demais também, porque exigem abertura minuciosa de cada barrinha crocante e estimulam a ingestão compulsiva. A quem for interessante, o papel ainda dá margens para dobraduras diversas. Para aqueles que possuem gatos, fazer bolinhas e jogá-las ao chão para divertir os felinos significará muitos minutos catando papéis picotados. Tipo uma versão remasterizada da atividade de catar feijão na infância, geralmente em companhia da mãe e da avó.
[A avó está com alzheimer. A mãe simplesmente não pode fazer alguns tipos de coisa por você.]
Netflix ajuda demais. Opte por séries com muitas temporadas e toda a culpa (e enxaqueca) envolvida em assistir dez episódios consecutivos. Quando acabar, já é muito tarde e não vale mais a pena abrir o documento do Word intitulado “agora vai” - mas que não vai nunca.
Dedicar-se profundamente ao estudo de assuntos não muito relevantes para a sua área são indicados. De parto humanizado à decoração de interiores. O primeiro renderá discussões acaloradas e o segundo, visitas presenciais e online em lojas e sites especializados. Ambos exigem tempo e paciência, coisas que você não tem, mas que por algum motivo precisa gastar.
Vinho é bom, mas cerveja é melhor, já que exige idas mais constantes ao banheiro. Máscaras faciais também são indicadas - dê preferência às de argila, porque vão te fazer ficar imóvel pra não sujar o manuscrito.
Uma boa saída é procurar viagens, traçar novas rotas. A minha última consiste em: Holanda, Bélgica, República Tcheca, Suiça, Áustria, Itália, Croácia, Grécia e Turquia. Provavelmente nunca farei esse roteiro, mas já tenho anotado algumas dicas de onde comer em Istambul, o que certamente me faz uma pessoa mais feliz e distante daquilo que preciso lidar.
Esmaltar as unhas, pé e mão, fio dental nos dentes, duas vezes pra garantir, aspirador na casa, como é duro ter gatos meu deus, o tempo passa, o relógio do micro-ondas já marca 20:18, o pote de bis na bancada, pizza de ontem na geladeira, cafeteira no ponto, capuccino, tem um filme bom que vai passar às 21:30, até lá não vale a pena fazer nada, 20:29, hoje é sábado, pode ser folga, amanhã é domingo, dia de maratona de filmes ou maratona de livros mas que sempre acaba virando maratona de sono, amanhã eu começo, amanhã eu juro que escrevo, mas hoje há ainda novo cálculo de rota, talvez Europa ocidental ou Ásia central ou qualquer lugar distante, bem longe, muito longe, daqui.

The broken circle breakdown











faço dedicadamente cada coisa que eu sei que ela gosta que eu faça

Trecho do conto "Dafne adormecida", presente no livro Dentes guardados (2001), do Daniel Galera [ou aquele que me fez quebrar o protocolo de não ler livro inteiro no computador com uma leitura ágil e compulsiva, engolida de uma só vez. saldo em tópicos: 1. dor nas costas; 2. olhos ardendo; 3. falta de ar; 4. 320 insights para artigos (vida acadêmica é uma merda); 5. muito (mais) amor pelo Daniel Galera;  6. muito amor por estudar literatura contemporânea brasileira.]:

"Só falo com a Dafne novamente na quarta-feira. Ligo pra ela de noite, antes de sair do serviço. Falo no celular, dentro do banheiro. Digo que preciso sentir o cheiro da nuca dela, o cheiro que ela tem na raiz dos cabelos atrás do pescoço. Quero sentir o gosto dela. Ela está na sala de aula, escuto ela saindo, diz que está indo pro pátio pra poder falar. Eu preciso ter ver, agora, digo. Preciso transar contigo agora, sem estar bêbado, nem cansado. Ela diz pra eu ir pegar ela na universidade. Saio do trabalho e vou. Vamos para um grande motel na zona norte. Peço a chave do quarto mais caro. Ela está usando o mais gracioso de seus vestidos, um que desenha seu corpo com perfeição. Ela me conta que deram o estágio pra uma outra pessoa. Eu arranco o vestido dela e beijo cada parte do seu corpo, faço dedicadamente cada coisa que eu sei que ela gosta que eu faça, fodo ela com a língua, boto ela de quatro metendo rápido, fundo, e agora acredito que meu trabalho, meu roteiro inacabado, tudo que eu queria ter escrito mas não consegui, minha poupança, nosso futuro apartamento,o mecenato, o rum e o chá de pêssego, os livros e os CDs, o Chile e os estágios, tudo isso junto não vale o momento em que ela olha pra mim por cima do ombro, com lágrimas nos olhos, dizendo Faz o que tu quiser comigo, faz o que tu quiser. Eu faço. E depois de tudo, deixo o quarto à meia-luz, somos embalados pelo silêncio profundo do ar condicionado e da água da piscina térmica, cubro ela com o lençol, já quase dormindo ela me diz Boa noite e eu, exausto, respondo: Boa noite."
(p. 77-78)

Azul


Corações batendo em todos os lugares. Muitos deles pareciam pequenas estocadas de uma agulha afiada e indolor. Principalmente em um determinado ponto dos joelhos - com atenção maior ao direito, que sempre pulsava por mais tempo.

Não sabia bem o itinerário dos dedos, se traçariam círculos perfeitos ou apenas movimentos repetitivos para cima e para baixo.
Às vezes gostava de deitar de bruços, simulando com a pelve o movimento conhecido. Ou então a cabeça deitada confortavelmente no travesseiro, como nessa noite. As mãos apertando com força os seios, que nessas horas, misteriosamente, não sentem dor alguma.
A cabeça jogada pra trás, o suspiro afogado de quem divide casa mesmo depois dos 30, o barulho contínuo do ventilador de teto.

Dedo do meio e indicador levemente úmidos de saliva, ação que só permitia consigo mesma e que achava uma falta de dedicação extrema quando feita durante o sexo. Enfiava rapidamente a mão na boca, inclusive os dedos que ficam de fora, deixando-os úmidos na medida certa. Nem baba demais, nem seco de menos. Nem diria ideal. Mas o suficiente pra penetrar a entrada, trazendo consigo a umidade escondida.

Não há nada no mundo melhor do que se deitar consigo mesma, ela pensava. Ou, se não pensava, poderia muito bem pensar, já que é uma das verdades absolutas desse mundo. Talvez a única, pensando bem.

Contorcendo-se na cama, o corpo tenso, os dedos dos pés que às vezes se abraçavam e estralavam para atestar a realidade do gesto, as pernas entreabertas e de repente uma pausa. Ela gostava disso. Parar no meio do caminho, imaginar o movimento dos átrios e ventrículos, sentir o sangue correr quente, enchendo seu corpo de manchas vermelhas arredondadas e deixando suas bochechas meio inchadas e igualmente vermelhas.
Continuava. O corpo como terra quente e molhada afofado por mãos cheias de sede, querendo sentir raízes, pedregulhos, insetos microscópicos.

Prova-se da terra. Há sujeira no gesto, claramente. Um gosto de ferro que escorre pelos lábios, uma vontade de mergulhar com a própria boca nesse amontoado de si mesma, devastar montes, puxar folha a folha da árvore que, mal crescera, escorre pelo tronco o sumo grosso de seus frutos. 

Mar agitado. Medo da solidão. Corações batendo por trás dos olhos. Expandir e cessar de costelas. Ar saindo rápido pelas narinas e pela boca. A calcinha presa apenas por uma das pernas. Ressaca.

Um cheiro forte e familiar nas mãos.


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