De tanto ser aérea, aprendi com as ventanias


De tantos professores e professoras que tive, duas foram fundamentais para que eu estruturasse o meu desejo e me tornasse quem eu tento ser hoje.
Na terceira série, Tia Vera, da Escola Santa Maria, escreveu num canto do caderno de redação o seguinte recado: “te vejo no futuro, escritora”. Provavelmente não era nada demais, talvez uma memorabilia de férias ou mesmo um texto sobre como a coisa que eu mais gostava no meu cachorro Pitt, membro recente da família, era a forma como ele sorria. O poodle Pitt morreu em 2010, mas as palavras da Tia Vera, que tinha olhos verdes ou azuis e um dos caninos levemente tortos, ficaram guardadas em algum canto de mim. Durante a infância estiveram meio adormecidas, é certo. Como se ainda não se soubessem encantadas...
Já na adolescência, quando redescobri os livros, as palavras da Tia Vera ficaram perdidas no meio de tanta coisa. O depois dos 13 anos... você sabe como é. O mundo bonito e feio ao mesmo tempo. Eu era, por assim dizer, uma adolescente mal compreendida. Uma pedagoga do Marista chegara a dizer certa vez à minha mãe que eu não tinha mais jeito. Assim mesmo: “desculpe, mas ela não tem jeito”. Aérea, dispersa...
Às vezes eu fugia para ir até a biblioteca no subsolo, meu território secreto, esconderijo potente. Lia muito. O tempo todo. No meio das aulas de matemática porque não gostava de matemática. No meio das aulas de literatura porque já achava que gostava o suficiente, então podia seguir por mim.
E foi numa aula que eu provavelmente matei para ir comer pastel na feira que minha amiga Raquel, fiel escudeira até hoje, que também foi minha mestra, me guiando pelos caminhos gregos da química e da física, ouviu a Rita Mendes, professora de português e redação, dizer que meu texto, entregue na semana anterior, era um bom exemplo de nota 10 na Fuvest. Eu não estava nem aí para o vestibular, mas ouvir aquelas palavras fizeram acordar as palavras antigas e já quase esquecidas da Tia Vera da terceira série. Então era isso, afinal?
Depois daí, Rita me falou sobre o jornalismo, corrigiu comigo o discurso do amigo que escrevi para a formatura e, em todos esses momentos, talvez sem perceber, me encorajou a ser eu mesma.
O poder do ensino, tão em maus bocados agora, está aí: nas palavras que nos alcançam, quebrando cascas, ressignificando falhas, construindo não muralhas, mas pontes.
Tenho quase 30 anos, lembro sempre da Tia Vera e da Rita e quero nunca esquecer da potência que é ensinar e aprender. Agora, no meio do doutorado em Literatura pela UEL, Universidade que me deu tudo o que sei, não por acaso estudo a dimensão de cura da escrita e da leitura. As palavras me deram tudo. Foi em cima de palavras que toda a minha existência se fundou. Há algo de sagrado nessa espécie de magia de letras, pontos e pausas. A linguagem produz realidade. O que nos salva é a palavra.
Ensinar é, acima de tudo, resistir. Mais do que respostas, são as perguntas que movem essa prática, tarefa perfeita para os inquietos. E a pedagoga, no final das contas, estava certa... Eu não tenho mesmo jeito. E espero nunca ter. De tanto ser aérea, aprendi com as ventanias. Espero logo poder ensinar também.
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