O sexo do amor

Amar
do latim amare
Verbo transitivo
- Ter amor a; gostar muito de.
- Estar apaixonado.

Não, não é isso que vocês estão pensando. Mas é quase. É que ultimamente venho percebendo que o amor tem sexo. Sim, como a gente, masculinofeminino. Desconfio até que o amor tenha uma genitália. Se você, cara amiga, não fica aí sendo sensível com qualquer marmanjo que dê na telha, se você não sai por aí distribuindo doçura para o mundo ou até se você não cumprimenta a todos com um delicado tchauzinho e um sorriso também delicado, parabéns, você tem um pau. Sim, é isso mesmo. E – pasmem – das duas uma, ou você tem um pau, ou você não gosta do mesmo. Isso mesmo, sem maiores eufemismos, você é uma puta de uma sapatão. Aham. Isso mesmo. Agora você, meu caro amigo, se você não goza e vira para o lado pra dormir, se você diz eu-te-amo e não eu-te-amo-também, se você não cospe na rua, e fala obrigado-porfavor, parabéns igualmente. Você tem uma vagina, ou, repetindo pra ficar bem claro, você não gosta da mesma. Ainda há os agravantes, claro. A mulher que gosta de futebol então... ou o homem que entende de literatura. Se entender de cinema então, fo-deu.
É tão absurdo o quadro acima que eu quase sinto vontade de vomitar. Estereótipos ridículos de uma sociedade mais ridícula ainda, que cansada de rotular até a própria bunda, resolveu sair por aí rotulando sentimentos e ações.
O amor tem sexo. Existe uma espécie de cadernetinha a ser seguida. Heteros fazem isso. Bissexuais fazem isso. Homossexuais fazem isso e isso. Fodam-se. Fodam-se com essas divisões medíocres.
Amor não tem sexo. Podem parar de matutar. Não se ama pelo par de peitos mais bonito, pelo pau maior, muito menos pela penetração mais funda – de dedos ou de pênis. Não se ama pelo corpo, matéria finda. Ninguém. Ou alguém aqui ao encontrar o amor-da-sua-vida, aquela pessoa que todo mundo espera mesmo que não diga, que se encaixa em cada cm em tudo o que você sempre idealizou, vai olhar e dizer: - hum, não... infelizmente com você não vai dar, porque você tem um saco pendurado aí embaixo. Ou, nossa, você é o amor-da-minha-vida, mas que merda, você tem grandes lábios, sorry.
Não somos genitálias humanas. Eu pelo menos não sou.
A minha vida toda eu procurei pessoas. Pessoa, para quem não sabe, é um substantivo e significa criatura humana.
O amor pra mim se dá pelo toque. Pelo cheiro da nuca. Pela disposição do sorriso. Pelo esticar dos dedos do pé no orgasmo. Pelo jeito de piscar. Pelo encaixe das mãos. Pelas batidas do coração. O amor pra mim é atemporal no tempo em que durar. É infinito na sua finitude. É assexuado na sua existência. É amor puro. Assim, sem complicações. E de repente penso que essas coisas de amor, de se dividir com alguém e em alguém, são simples demais. A gente é que complica tudo.
O amor pra mim se encontra na primeira pessoa do plural.
O amor pra mim independe do que se carrega no meio das pernas.
E sem querer ser piegas, mas já sendo há tempos, o amor pra mim depende apenas do que se carrega do lado esquerdo. Átrio, ventrículo, miocárdio. E se tem um órgão que deveria ser levado em conta na hora de julgar a verossimilhança do amor, é este.
E enquanto o mundo grita estupidez e pequenez, eu gozo de um amor tão grande que extrapola a matéria. E morro de um amor tão doce que – tenho certeza – pouquíssimas pessoas já experimentaram.
Amém.

Ensaio sobre a entrega


Se encontraram e fazia sol.
Estavam lá, sentados no mesmo banco. A mão de um segurando um cigarro com peso de três mundos, a mão do outro escrevendo qualquer besteira num desses cadernos que se tem medo de abrir. Rabiscando, talvez. Pouco importa.
O de cá tira um livro da bolsa.
- Que livro é este?
Com olhar assustado pela audácia vestida de naturalidade, responde. – Nelson Rodrigues.
Monossilábico por fora, mas feito um caça palavras por trás dos olhos castanhos tão comuns.
- Eu gosto.
- Eu estou começando a ler agora, na verdade.
- Isso é bom, menino.
O “menino” ficou soando alto nos ouvidos. Me-ni-no.
- Acho que sim.
- A crueza das coisas às vezes dói.
- Em Nelson?
- Em mim. Em você.
Alguns silêncios. Outro cigarro.
- Eu não fumo.
- Que bom pra você.
- Me dá um cigarro?
Alguns vazios.
Cigarro é sempre um ótimo caminho e uma boa desculpa pra esquentar a cama. E a alma.
- Moras aqui perto?
- Aqui na rua de trás.
- Eu moro aqui na rua da frente.
- Vou indo.
- Te levo.
- Mas é completamente oposto.
- Eu gosto.
Caminharam como a sensação de que, pé ante pé, estavam indo muito além do que seus passos ousariam pensar.
- Quer subir?
Perguntou quase que se arrependendo de ter o feito.
- Quero. Tomar café, quem sabe?
Droga. Pensou. Talvez sim. Talvez não. Quando o estado das coisas se chama solidão, qualquer coisa vale.
Sorriram.
O apartamento era pequeno. Escuro. Cheio de livros perdidos pelos cantos. Um deles estava aberto em cima da mesa ao lado do colchão que fazia às vezes do sofá. Nelson Rodrigues. O mesmo Nelson Rodrigues. Reparou isso envergonhado e já começou a pensar em destinos, cartas, búzios e signos. Aquário. Áries, talvez. Câncer, quem sabe. Bobagens que a gente inventa pra se acreditar em destino.
- Quer outro cigarro?
Fez que sim com a cabeça. O de lá se oferece para acender. Não acendeu. Não ainda. Agora sim.
O de cá solta a primeira baforada e eles se olham feito duas crianças cientes de que uma travessura estava por vir.
- Não gosto que me olhes assim.
- Por quê?
- Me arrepia cada centímetro de pêlo.
O de lá sorri de canto de boca e fecha os olhos de leve.
- Feche os olhos também.
- Fecho.
Rosto com rosto, esfregaram-se feito animais apaixonados.
Olhos fechados.
A respiração acelerada acompanha o ritmo do coração, velho de guerra.
Dos corações.
O de cá nunca amou ninguém de verdade, embora tenha amado daquela forma torta que parece o anti-amor, tão cru como as vontades rígidas um do outro. O de lá amou violentamente, só não morreu porque conseguiu enxergar na pouca realidade que lhe resta que brincar de Werther mais machuca do que cansa.
Se esfregavam feito gatos. Procurando na barba, nos pêlos, algo que dissesse qualquer coisa. Sobre eles. Sobre o que sempre falta.
- Me beija.
Beijaram-se.
Boca com boca.
O de lá arrancou sua própria camisa. Depois a calça. Ficou nu. Puro. Leve.
O de cá o seguiu, arrancando toda a roupa também.
Deitaram-se no chão escuro de madeira e se abraçaram, com as pernas entrelaçadas e as mãos dadas.
Beijaram-se mais e mais e mais. Engoliram-se num quase ritual antropofágico.
Corpo, nuca, mão e a tua mente não. Pensou. Pensaram.
Passaram a noite em claro. Beijando-se e tocando-se na esperança de que alguma coisa mostrasse que.
Vinho, cigarro, corpos tantos, salivas, dentes, rostos. Tanta coisa e esse buraco no meio do coração. Bobagem querer preencher.
Madrugada, explodiram. De amor cru, dolorido e doce. Melecaram-se inteiros e nunca mais se viram.
Fazia sol.
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