Ensaio sobre a entrega


Se encontraram e fazia sol.
Estavam lá, sentados no mesmo banco. A mão de um segurando um cigarro com peso de três mundos, a mão do outro escrevendo qualquer besteira num desses cadernos que se tem medo de abrir. Rabiscando, talvez. Pouco importa.
O de cá tira um livro da bolsa.
- Que livro é este?
Com olhar assustado pela audácia vestida de naturalidade, responde. – Nelson Rodrigues.
Monossilábico por fora, mas feito um caça palavras por trás dos olhos castanhos tão comuns.
- Eu gosto.
- Eu estou começando a ler agora, na verdade.
- Isso é bom, menino.
O “menino” ficou soando alto nos ouvidos. Me-ni-no.
- Acho que sim.
- A crueza das coisas às vezes dói.
- Em Nelson?
- Em mim. Em você.
Alguns silêncios. Outro cigarro.
- Eu não fumo.
- Que bom pra você.
- Me dá um cigarro?
Alguns vazios.
Cigarro é sempre um ótimo caminho e uma boa desculpa pra esquentar a cama. E a alma.
- Moras aqui perto?
- Aqui na rua de trás.
- Eu moro aqui na rua da frente.
- Vou indo.
- Te levo.
- Mas é completamente oposto.
- Eu gosto.
Caminharam como a sensação de que, pé ante pé, estavam indo muito além do que seus passos ousariam pensar.
- Quer subir?
Perguntou quase que se arrependendo de ter o feito.
- Quero. Tomar café, quem sabe?
Droga. Pensou. Talvez sim. Talvez não. Quando o estado das coisas se chama solidão, qualquer coisa vale.
Sorriram.
O apartamento era pequeno. Escuro. Cheio de livros perdidos pelos cantos. Um deles estava aberto em cima da mesa ao lado do colchão que fazia às vezes do sofá. Nelson Rodrigues. O mesmo Nelson Rodrigues. Reparou isso envergonhado e já começou a pensar em destinos, cartas, búzios e signos. Aquário. Áries, talvez. Câncer, quem sabe. Bobagens que a gente inventa pra se acreditar em destino.
- Quer outro cigarro?
Fez que sim com a cabeça. O de lá se oferece para acender. Não acendeu. Não ainda. Agora sim.
O de cá solta a primeira baforada e eles se olham feito duas crianças cientes de que uma travessura estava por vir.
- Não gosto que me olhes assim.
- Por quê?
- Me arrepia cada centímetro de pêlo.
O de lá sorri de canto de boca e fecha os olhos de leve.
- Feche os olhos também.
- Fecho.
Rosto com rosto, esfregaram-se feito animais apaixonados.
Olhos fechados.
A respiração acelerada acompanha o ritmo do coração, velho de guerra.
Dos corações.
O de cá nunca amou ninguém de verdade, embora tenha amado daquela forma torta que parece o anti-amor, tão cru como as vontades rígidas um do outro. O de lá amou violentamente, só não morreu porque conseguiu enxergar na pouca realidade que lhe resta que brincar de Werther mais machuca do que cansa.
Se esfregavam feito gatos. Procurando na barba, nos pêlos, algo que dissesse qualquer coisa. Sobre eles. Sobre o que sempre falta.
- Me beija.
Beijaram-se.
Boca com boca.
O de lá arrancou sua própria camisa. Depois a calça. Ficou nu. Puro. Leve.
O de cá o seguiu, arrancando toda a roupa também.
Deitaram-se no chão escuro de madeira e se abraçaram, com as pernas entrelaçadas e as mãos dadas.
Beijaram-se mais e mais e mais. Engoliram-se num quase ritual antropofágico.
Corpo, nuca, mão e a tua mente não. Pensou. Pensaram.
Passaram a noite em claro. Beijando-se e tocando-se na esperança de que alguma coisa mostrasse que.
Vinho, cigarro, corpos tantos, salivas, dentes, rostos. Tanta coisa e esse buraco no meio do coração. Bobagem querer preencher.
Madrugada, explodiram. De amor cru, dolorido e doce. Melecaram-se inteiros e nunca mais se viram.
Fazia sol.

3 comentários

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...