Como se eu não fosse uma pessoa de verdade

Pareço uma barata tonta tentando entender o que significa você ter ido embora.
Te deixei no aeroporto e fui resolver coisas da vida prática, tipo procurar uma estante para os livros na loja de móveis usados. Simulei a sua não ida, quase como se você nunca tivesse chegado. Uma ausência de dor, de repente. Não sinto nada.
A cidade parece sonolenta, como se nada fosse real. Nem eu, nem você, nem as turbinas do avião zumbindo no meu ouvido.  

Clare Elsaesser
Hoje o relógio soou às 08h. A gente tinha planos de acordar, buscar pão francês, fazer um café da manhã gostoso e ficar bem perto, recapitulando o nosso plano meio torto, conversando sobre como seria mais fácil a gente não ter ambição alguma e ficar pra sempre numa cidade pequena trabalhando numa empresa medíocre. “A gente podia ficar por aqui, trabalhar em qualquer lugar x e construir um império”, você disse, meio rindo. “Deve ser bom não pensar o tempo todo. Apenas ir vivendo mesmo. Tipo sair do trabalho de 8-horas-por-dia-com-duas-horas-de-almoço-e-carteira-assinada, comprar queijo e presunto no mercadinho da esquina, chegar em casa, comer e dormir”, eu disse. “Na verdade deve ser horrível ser assim”, a gente pensou.
A função soneca tocou às 08h15, 08h45 e depois 09h00. Acordamos atrasados e você me olhou com cara de tristeza quando viu que o tempo estava bom. A gente tinha torcido pra dar um temporal bem feio para o voo ser cancelado.

Cheguei em casa sem você. Tudo bem, eu sempre chego em casa sem você, já que a gente não mora junto. Mas hoje eu cheguei efetivamente sem você. Até os prédios me olharam com pena. Tenho vontade de ligar para todos os meus amigos e pedir para que todos eles venham até mim, façam fila na minha porta, me tragam vasinhos de suculentas, me sugiram séries novas para assistir. Tenho vontade de pedir socorro, de rasgar os documentos, o passaporte, as fotos antigas e começar tudo do zero com você. Mas não posso fazer isso, porque 1: simplesmente não dá agora 2: preciso do meu RG pra pegar o avião pra te visitar no mês que vem.

Eu te disse que ia ser legal, que Porto Alegre é bacana, que a gente vai poder ir pra Gramado, Canela e pra Montevidéu com toda a certeza. Mas é mentira minha. Eu odeio Porto Alegre com todas as minhas forças nesse momento. E odeio o fato de o único voo direto pra essa droga de cidade ser com uma merda do avião de hélice que quase caiu na única vez em que você o pegou.

Olhei pro espelho do meu banheiro de um jeito firme, apertei os olhos querendo chorar. Sempre fazia isso quando eu sofria na infância. É tipo um jeito tosco de ser espectadora da sua própria tristeza e ao mesmo tempo dirigir de forma minimante estética as próprias emoções. Não preciso dizer que nunca dá certo. Eu não consegui chorar. Tá preso aqui, 1 cm embaixo da glote, o que causa um bolo estranho na faringe e uma falta de ar. “Meu coração tá quebrado”, eu falei depois de te dar um beijo e cheirar o seu pescoço. “Eu te amo. Vai dar tudo certo”, você disse com cara de desespero e com uns olhos de criança.
Vai, sim. Claro que vai.
Mas agora, assim, enquanto o ponteiro não gira, enquanto a vida não ajuda, eu sinto como se o tempo tivesse parado na hora em que você entrou no portão de embarque. Eu sinto como se eu não fosse uma pessoa de verdade.

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