So blue

Não consigo entender o que realmente causa a solidão. Não digo a solidão por si só, mas a existência dela: a hora pura em que ela surge.
Será a presença bruta de uma única caneca suja sobre a pia? O café frio na garrafa térmica, os lençóis com um só cheiro, os chinelos de quarto nunca compartilhados, a tampa da patente erguida e nunca abaixada por outras mãos? É que não existem outras mãos. Não existem.
No meio dessas buzinas que não param, no meio dessa bagunça de vozes sedentas por qualquer coisa, um olhar, quem sabe, um olhar no meio de tantos carros. Um olhar que ao ouvir Janis soar no som do velho fusca abre lentamente o vidro e apenas vê, como que querendo dizer ‘eu entendo’ ou ‘ também estou aqui’, i know how you feel, little girl blue, little girl blue, little girl blue.
Nada faz sentido. O vidro não é aberto. O fusca não existe. Janis Joplin não canta.
Preciso tanto. De alguma coisa. De alguém.
Um verso.
Um soneto.
Outra caneca de café suja em cima da pia.
Porque estou sozinho e já é noite. E quando é noite e eu estou sozinho, minha mente se enche de fantasmas terríveis que eu não consigo afastar. E eu procuro naquela velha agenda algum número, algum amigo, algum velho amor. Não encontro nada.
No entanto, encontro páginas em branco. Cartas não enviadas, frutos de amores não correspondidos. Nessa merda de vida ninguém consegue se dar por inteiro, pensei. Ficam por aí, se esfregando em noites longas, roçando a pele do rosto, tocando ligeiramente a coxa alheia, chupando-se em banheiros sujos. Metade. Todos malditas metades.
Eu, inclusive.
Preciso tanto.
De qualquer coisa.
Um chá quente.
Um cigarro.
Algo nas mãos.
Segura na minha mão. Sussurra no meu ouvido aquela história de outrora. Toca meu coração. I know you feel. Solidão também se divide. Traga sua maldita caneca, faça um café, coloque-a já suja em cima da pia e venha se deitar em cima do meu corpo, já que a alma escorreu em alguém que eu preciso tanto e que nunca esteve aqui.

4 comentários

  1. acho mto incrível a forma como vc encaixa as frases. Espero passar o resto da minha vida lendo seus encaixes.

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  2. "Solidão também se divide."

    isso me tocou profundamente.

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  3. perfeito como sempre Layse.
    "Somos todos malditas metades"
    adorei!
    beijos :*

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