Respirar de novo

Eu descobri agora porque parei de repente de ler.
Hoje eu acordei, coloquei minha blusa vermelha de lã, a meia por cima da calça de moletom. Em casa, tão confortável, tão segura. Aqui, nada de ruim pode acontecer comigo. A cachorra lambe as patas, ansiosa. O gato se esconde embaixo da colcha, com medo do mundo. Gato de apartamento.
Mas aqui eu acho que estou segura.
Então eu resolvi tirar uma manhã inteira pra ler aproveitando o silêncio raro que paira por aqui. Estou sozinha e confortável. A porta está trancada, minha mãe foi pra casa da minha avó, casa que habita a maior quantidade de loucura por m² . Três filhos, dois esquizofrênicos.
Passei a minha infância inteira com medo de enlouquecer. Quando não era isso, era o medo da minha mãe morrer. Os vinte anos chegaram e lembrei do que sempre me disseram: é aí que a psicose bate. Já passei da metade da década fatídica e ainda nada. Eu já fui pro divã duas vezes, então devo ser mesmo neurótica. Histérica, mais provavelmente. Não sei. Mas e se Freud estiver errado e Lacan não tiver percebido? E se a loucura ainda bater por aqui e a minha analista não percebeu?
Eu tenho a sensação de que desde criança eu fico masturbando a minha mente o dia inteiro. Pensando o que fazer com a alegria quando estou feliz e o que fazer com a tristeza quando estou na merda. Não chego a nenhuma resposta para os dois casos e sigo compulsiva por pensar. Traçar planos e rotas e medos e histórias inventadas com pessoas que não conheço e que provavelmente nem sabem que são personagens da história mental absurda que invento todos os dias desde que me conheço por gente.
Eu consegui dar uma bloqueada em todos esses impulsos por um tempo. Um tempo que coincidiu com a maior ressaca literária da minha vida. Eu parei de ler.
Eu respirei fundo e consegui acordar cedo por um ano inteiro e cumprir com meus compromissos. Eu escrevi uma dissertação, eu desisti de escrever romances. Eu coloquei uma calça flare e uma bolsa de couro e pensei: agora sou adulta. Eu consigo. Não pode ser assim tão difícil.
É isso que os adultos fazem o tempo todo, né? Eles mentem que tá tudo bem enquanto procuram o tarja preta no fundo do bolso.
Eu falo pra minha analista que às vezes eu só queria que a minha cabeça parasse um pouco. Só queria não sentir às vezes. Acordar e conseguir fazer as coisas sem morrer de angústia no meio do dia. Sem chorar porque não cheguei a lugar nenhum, mesmo sem saber que lugar é esse que eu queria tanto ter chegado.
Eu explodi hoje. Depois de tanto tempo, eu explodi. E vejo agora que eu estava meio dormente, como se tivesse sentado em cima do meu próprio pé e não o pudesse o sentir por inteiro. Só que eu estava toda assim. E daí peguei um livro sobre guerra e mulheres pra ler neste domingo de manhã e não tive como continuar, porque a guerra contada por mulheres é a guerra subjetiva, é a guerra útero e sangue e tranças. Mas daí o estrago já tinha sido feito e restou essa bola de alguma coisa no meio da garganta. Aconteceu. Voltei a doer inteirinha, depois de tanto tempo. Arde e eu escrevo, arde e eu escrevo. Então finalmente consigo respirar direito de novo.

Os anos que passamos juntos

Depois que acabam, os anos que passamos juntos ficam parecendo memória inventada. A cama triplica de tamanho, o cobertor amanhece intacto sobre meu corpo. 
Eu posso escolher todos os filmes e pausar mil vezes pra anotar as minhas frases preferidas, fazer xixi  mil vezes ou começar a ver outra coisa. Ninguém diz nada, porque não há mais alguém.
Eu também posso dormir ainda nos créditos iniciais, ver séries de clones ou assistir aos meus desenhos preferidos - e posso chorar com o fim deles, porque eu sempre choro e você sempre ri, sempre ria, porque é uma pessoa que não entende como pode ser triste o final de Toy Story 3. 
"Eu já vivi isso antes", eu tento me lembrar. 
Fica tudo uma grande bagunça, em que você não sabe direito pra onde andar, como se vestir, como dançar sozinha no meio da pista. E então você busca um corpo amigo pra abraçar e dançar com você e fecha os olhos bem apertado e finge que tudo desapareceu e que você se basta. 
Mas talvez isso não seja verdade. 
Ou talvez seja, mas isso não faz das coisas menos doloridas agora.
É preciso reaprender a ser eu mesma.
O que eu desejo? Quem eu quero ser? Como será o próximo ano? Qual será o próximo passo?
Análise e bebida ajudam. Dançar é bom. Conversar com amigos. Sexo casual. Conversar com amigos de novo. 
Eu me distraio. 
Parece que vai dar certo. Já terminei o livro que comecei a ler ontem, já organizei a agenda, quero passar o ano novo no Deserto de Atacama. Curso de inglês do outro lado do mundo talvez seja uma boa - um lugar em que a gente não exista e eu tenha que inventar outros nós. Voltar a fazer exercício físico também pode ser bom. Começar a fumar pode ser uma boa ideia.
Quereres.
De repente agora aprendo de vez a ser adulta.

(Mas do café que eu faço de manhã ainda sobra uma xícara.)

A internet e o silêncio

Natalie Foss

Às vezes parece que eu só existo enquanto eu falo. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. 
A tristeza pede doses mais dramáticas. Versos são sempre bem-vindos pra tentar dar conta da bagunça. O contrário, a alegria, também costuma funcionar mais ou menos assim. Só que é um espernear sem tamanho. Geralmente vem em prosa, em fala não contida, em vontade de dançar.
Mas eu às vezes quero o silêncio. Preciso dele. Pode ser o sol que está em Câncer ou só aquela sensação de que de vez em quando a vida pede uma pausa pra respirar. Duas braçadas e o ar entrando ardido pelo nariz e pela boca. Mais duas braçadas.
Às vezes surge aquela vontade de ficar quietinha, da meia por cima do pijama, sem maquiagem, sem sutiã;  chegar em casa, tirar os sapatos e se tacar no sofá pra assistir qualquer coisa que fale por mim.
Mas como lidar com esse desejo silencioso em tempos de internet e redes sociais, esse mangue de palavra e som? 
Nessas últimas semanas tenho pensado muito isso. Nesse desejo de fazer-se ver como ideal, sem sombras, sem falhas, sem tristezinhas fundas e insistentes.
Não à toa, bate aquela bad trip quando a gente rola o feed do Instagram e pensa: essas pessoas conseguiram passar por este dia de uma forma que eu não consegui. A boa e a má notícia é: elas também não conseguiram.

Excesso de conteúdo & vida perfeita

Rede social e internet são simulacros e isso não é nenhuma novidade. Você é seu avatar e vende a saúde, a beleza, a boa vida. Pode vender também sua inteligência, seu bom senso, seu olhar crítico. Tudo depende. Apesar de algumas mudanças significativas, ainda há a necessidade de perfeição, seja na beleza, seja na coerência. Só que a perfeição não existe nem nesses casos nem em nenhum outro. Mas nadar em busca disso me parece o ritmo com o qual muita gente ainda dança, apesar das tentativas de fuga.
Fala-se muito por aqui. Há essa necessidade de expor, de botar pra fora. Textão is the new vômito e seguimos assim, nos virando do avesso. Junta-se isso ao ideal de vida perfeita, do avatar que não sofre, que não se deixa atravessar pelas ~adversidades~, e temos o n.1 do menu: o sentimento de fraude.
Não dá pra ser feliz o tempo todo. Não dá pra ser leve o tempo todo. E como falar sempre sem se mostrar frágil, torta, incapaz? A resposta, pra mim, está na pergunta. Retira-se o "sem". Não adianta fugir/fingir. Somos todos frágeis, tortos, incapazes. A mentira não cola mais. Não por acaso, a rede social que mais vem crescendo no momento é o Snapchat, que até então preza pelo real, pelo sem filtro, pela efemeridade que simula o diálogo entre as pessoas. Fala-se e as palavras se perdem por aí segundos depois. O que fica é a lembrança, o impacto, o riso.

Isso tudo pra dizer: como respeitar o próprio silêncio na internet?
Não tenho ideia, mas penso que a resposta não cabe aqui nem em nenhuma outra rede - e o desejo pelo silenciamento, infelizmente ou felizmente, não se autodestrói em 24 horas.

Youtube é ótimo, mas você já experimentou vida real?

Lista da semana: Especial Flip

A Flip me deixou silenciosa. Foi um mergulho de volta à literatura - de onde eu estava bem distante. É como se eu tivesse perdido um pouco o jeito de falar.

Mesmo assim, pra não deixar passar batido a Lista da semana, selecionei aqui minhas coisas preferidas da Festa Literária Internacional de Paraty.

Paraty é azul
Toda vez em que eu visito uma cidade, tento encontrar uma cor pra ela. Paraty é azul.

Luvas de pelica

Não sei por qual motivo só estão disponíveis os áudios das mesas, sem o vídeo. Mesmo assim, essa foi uma surpresa pra mim e vale muito a pena ser ouvida. Traz um olhar talvez mais acadêmico da obra da Ana Cristina Cesar, autora homenageada da Flip 2016.

Tati Bernardi e a volta à adolescência
Eu tinha 14 anos quando descobri em palavra um eco de tudo o que eu sentia. Um eco Tati Bernardi. Eu a lia compulsivamente. FIz trocentas comunidades no orkut (sdds) com minhas frases preferidas, esperava por cada texto novo com uma ansiedade incontrolável. 
Um dia, enviei um texto meu pra ela e aos 15 anos ganhei o mundo quando ela o publicou em seu site. Tati, do começo dos seus vinte anos, me deu a maior certeza que eu tenho até hoje: a escrita. 
Eu torci pela Tati como poucas vezes torci por alguém nessa vida. Comprei a primeira edição de seu primeiro livro, acompanhei cada conquista. Cresci com ela, sendo guiada da melancolia ao humor, do amor ao escracho. Enquanto a lia, sentia que a vida, mesmo que por poucos minutos, ficava mais bagunçada, mas, de algum modo estranho e inexplicável, também mais compreensível. 
Encontrá-la na minha primeira Flip, depois de mais de 10 anos como sua leitora, foi de encher o coração de amor e orgulho. 

Bombom da Maga
Sorry estragar a expectativa de apenas coisas literárias, mas o bombom da Maga ganhou meu coração <3 Comi todos os dias e ainda trouxe uma caixa pra casa - que, claro, também já non ecziste mais. Caso esteja com viagem marcada pra Paraty, sugiro que passe por lá todo dia e leve pra casa um estoque considerável.

Um poema triste
Ana Cristina
(Cacaso)

Ana Cristina cadê seus seios?
Tomei-os e lancei-os
Ana Cristina cadê seu senso?
Meu senso ficou suspenso
Ana Cristina cadê seu estro?
Meu estro eu não empresto
Ana Cristina cadê sua alma?
Nos brancos da minha palma
Ana Cristina cadê você?
Estou aqui, você não vê?
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