Orfeu menos Eurídice (coisa incompreensível)


Sabe, a vida sem você é uma bagunça bonita. Tudo é uma outra versão da mesma coisa.
Eu não sei se você acordou às duas da tarde ou se resolveu levantar às sete, em um daqueles dias que você cisma que quer ser saudável, para de fumar e sai pra caminhar no parque.

Eu não sei quase mais nada de você. E acho que tudo bem.

Esses dias você me disse que é tudo muito triste, porque de fato a gente vai se acabando mesmo, até o ponto em que vai se esquecendo, se esquecendo e de repente tudo se resume a uma foto guardada no fundo da gaveta do criado-mudo que causa surpresa quando encontrada.  Quanto tempo passou, né?, nós vamos pensar.

É estranho sentir outras bocas, outros cheiros.

Mas é um estranho bom. Porque terminamos por aqui mas ainda existimos. Eu e você.
Não há mais nós no presente. Somos o que fomos - e isso não muda nunca.

Mas é bom deixar as coisas pra trás. Saber a hora de deixar ir.

Acho que isso, na verdade, é a equação mais difícil de um relacionamento. Cada parte da gente quer ficar, mas a gente sabe, sente ali no fundo, que é hora de ir. Que precisa. Tipo um abre alas para o coração: deixar os olhos verem outra coisa.

E eles veem. E como veem. E outras coisas surgem e outras pessoas surgem. Pessoas que você nunca tinha desconfiado da existência, mas que andam por aí e dançam e bebem e beijam.

Mas isso não apaga, não. Nada apaga a gente.  Eu sinto que vou ser meio que sempre um porta estandarte de tudo o que a gente viveu. Tá na minha pele. No mapa que você traçava com a ponta dos dedos com as pistas deixadas pelas pintas das minhas costas.

Seu gosto continua aqui.

Mas sigo. Preciso. Você também.

Quanta coisa que nem cabe. Que sorte a nossa.

Vai tua vida. Orfeu menos Eurídice (coisa incompreensível).

Imaginação

De todos os amores que eu tive
os que eu
não vivi
foram os
 m a i o r e s.

Breve reflexão sobre a crônica, o eu do cronista e o autor empírico

O texto do Gregorio Duvivier causou comoção nacional nesta semana. Eu o li, achei uma crônica bonitinha e segui a vida. Não entendi direito o porquê de todo o frisson, mas, lendo textos e comentários sobre, concluí: quando se trata da crônica, as pessoas não sabem diferenciar o eu do cronista do autor empírico
Explico: quando lemos um poema, não pensamos: nossa, olha essa poeta expondo seu boy; ou: nossa, olha esse poeta atravessando os limites do público e do privado. Isso tem uma explicação, claro. A poesia é "protegida" pelo eu lírico, essa espécie de persona poética, uma voz que permite dizer o que quer que seja dito. 
Do mesmo modo, no conto e no romance temos narradores - e por mais que sejam em primeira pessoa ou com toques claramente autobiográficos, é certo que há uma distinção entre narrador e autor. 
Na crônica, em específico, isso se confunde um pouco. E, claro, tem ligação com as características próprias do gênero: despretensiosidade, cotidiano, simplicidade, tom íntimo, proximidade com o leitor, enfim, a vida ao rés do chão. Apesar de suas muitas possibilidades, a crônica a como estamos acostumados hoje acaba remetendo a certa proximidade com a vida daquele ou daquela que a escreve. 
Não há como não se sentir próximo de Tati Bernardi, Antônio Prata, Milly Lacombe e do próprio Gregorio Duvivier - para citar alguns cronistas atuais. E era assim antes também, com Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Mário Prata, Clarice Lispector, Drummond...  A proximidade é real. Isso é indiscutível. Até pelo próprio suporte da crônica, que está lá, em sua essência, nas páginas do jornal, no folhear rápido e no encontrar de repente com uma voz parcial, que te diz mais coisas além de o que, quando e como. Cruzar os olhos com uma crônica entre as páginas do jornal nos faz quase que dizer: muito obrigada. É a eternidade na impermanência
Isso não quer dizer, no entanto, que um cronista tem compromisso com a verdade ou que está simplesmente passando no papel a sua própria vida, sem filtro, sem intenção literária. Ou melhor: isso não quer dizer que um cronista não ficcionalize as coisas e também a própria vida. A crônica é um gênero literário e é tão enganador quanto qualquer outro - talvez até mais, por exatamente simular o não engano. A crônica não é autobiografia.
Exatamente por isso, eu gosto da ideia, cunhada por Luiz Carlos Simon, de chamar essa voz da crônica, que às vezes tanto se aproxima do autor empírico, o autor de verdade, o nominho na frente da capa, de eu do cronista. Isso ajuda a separar as coisas e fazer com que a gente pare de soar como xerife de gêneros literários e colocar na fogueira escritores e escritoras que só estavam fazendo, adivinhe só, literatura. 
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