Big Little Lies - We are all fucked up, mas estamos juntas


Assisti Big Little Lies com certo atraso e desde que acabei a série não consigo pensar em outra coisa. Eu literalmente aplaudi por minutos depois da season finale.

No primeiro episódio, lembro de pensar: eita, não sei se gostei. Achei superficial, quase boba, a história daquelas pessoas, morando naquele lugar maravilhoso com suas vidas relativamente perfeitas. Que engano o meu.

O primeiro episódio é quase uma pegadinha: o mar pela janela do carro, as famílias bonitas, a trilha sonora impecável. Mas Big Little Lies não é nada do que parece ser a princípio e o mar vira ressaca, rebentação e já dá a letra: aqui, não se trata do raso.

Entre a superfície e o fundo, um zoom na vida de três mulheres vai dando conta da dimensão da coisa toda. São elas: Madeleine, Celeste e Jane. Em segundo plano, mas não menos importantes, Bonnie e Renata.


Entre o raso e o mergulho, tudo é contradição - como de fato é a vida real. Então "a música mais bonita do mundo" toca enquanto Perry e Celeste, um casal que confunde violência com amor, dançam abraçados; os roxos aparecem em meio ao erótico; o medo se dissipa na esperança burra; a família perfeita é atravessada pelo impulso do desejo...

Nada é o que parece ser em Big Little Lies.
A competição feminina, tão imposta a nós, mulheres, desde sempre, está lá, mas ganha uma dimensão outra, talvez poucas vezes representada cinematograficamente - o que talvez faça da série uma das produções mais importantes e necessárias da história recente. A cena final, aliás, com as cinco mulheres juntas e com Celeste finalmente com os braços livres, sem as mangas longas os cobrindo, é das mais belas e potentes. Nela, não há um diálogo, mas há uma afirmação implícita: As mulheres têm histórias. E são grandes. E profundas. E complexas. E totalmente fodidas. E nós vamos contá-las.


Parece óbvio, eu sei, mas, se você olhar para os filmes pelo filtro do teste de Bechdel, por exemplo, vai ver que não, não estamos sendo representadas na ficção de uma forma condizente.

Big Little Lies, me parece, faz algumas perguntas básicas: qual é o seu desejo? É essa a história de si mesma que você quer contar? Assim sendo, convoca cada uma das personagens a serem as protagonistas da própria vida e donas da própria narrativa - o que envolve muita angústia, claro, mas que mesmo assim diz sobre um ir-em-busca-de-si-mesma e talvez, finalmente, abrir mão do que na verdade nunca se teve e de um lugar que não se quer mais ocupar.

Episódio a episódio, mergulhamos na intimidade dessas mulheres superficialmente perfeitas e vemos o que nenhuma cidade lindíssima da costa californiana consegue esconder: We are all fucked up, mas - não podemos esquecer - estamos juntas.

Faça coisas com a sua dor

Elfride Nutiu
Faça coisas com a sua dor
Coloque o mar nos olhos
Deixe escorrer sem medo
Ressaca a estalar no seio

Musgos, plânctons, algas
Animais marinhos
A tocar os cílios
Talvez mesmo a íris

Janela a ser limpa
Por orixás
Ou quem sabe
Alguma deusa desconhecida

Então faça
Caminhe até o farol
Uive de frente para a baía
Finque os pés na areia
Comece uma coleção de conchas
Atire-as no vento sem olhar pra trás
Escale uma figueira
Dance em volta do fogo
Aprenda a ver no escuro

Agradeça

Faça coisas bonitas com a sua dor
Pinte ondas no que antes era água e nada
Deixe arder
Mas te lembra:
floresça

Como quem diz
Está tudo bem

Ou ainda
Perdóname
Lo siento
Te amo
Gracias.

Eu escrevo


Eu escrevo
então tatuei uma chave no pulso esquerdo
perto da mão com a qual seguro o lápis
pra não esquecer nunca
que isso é tudo o que eu sei
que existir é sobre isso

Mas nunca me disse escritora

(certo medo de pré-escola
uma insegurança a me pesar sobre os ombros)

olho em volta
e qualquer João
não tem medo algum

em letras garrafais
a assinatura bem empolada sobre a linha fina:
escritor

Então eu não escrevo
não só

Há que se apropriar do feminino
da marcação de gênero
do chamamento

Sou escritora

e não há verso
em que eu não me aprisione
para me libertar.

Como se

A gente vai vivendo como se
um minuto valesse
todo o resto das coisas todas

Como se fôssemos dados ao amor
como se fôssemos suficientes

A gente vai vivendo enganando os dias
se equilibrando em ponteiros de relógios quebrados
como se existíssemos sem destino

Mas sempre houvesse um cais
ou qualquer embarcadouro
de origem ainda desconhecida

Como se houvesse
um final feliz
a gente vai vivendo
como se.

Rennie Ellis

Formigas

Eu gostaria
na verdade
de não me abalar
tão facilmente
com as coisas

Todas elas
as gigantes
e as minúsculas

Eu gostaria apenas
não é pedir muito
de um pouco de paz

Mas
é sempre uma desordem
mãos suando nas manhãs vazias
corpo cheio de formigas
como se fosse mel que escorresse
 pelos meus buracos

Eu gostaria de chorar mais
e pensar menos
de saber dizer não
de sofrer pouco com livros de poesia
de fazer o ar parar de faltar

Também gostaria de fingir menos
que sinto tanto
quando
na verdade
às vezes vou pra frente do espelho
pra poder me ver lambendo o pouco
da água salgada que escorre

Eu gostaria que as coisas fossem mais dóceis
visto que já tenho quase 30 anos
e o mundo é uma bola grande e dolorida

Mas continuo aqui
pernas abertas, braços escancarados
uma pontada no pulmão
(e ainda acho bonito)

Talvez a única coisa a fazer
seja mesmo
tocar um tango argentino.

Lugar seguro

Você é um lugar seguro
Em que eu aprendi a estar

Um buraco fundo
e quente
cavado com mãos sardentas
e unhas roídas
e guardado em segredo
nas minhas esquinas

É pra esse buraco que eu corro
vez em quando
quando tudo dá errado
e cavo eu mesma
com as minhas mãos vazias

e encho as unhas de terra
até sangrar
e arder
até preencher outros buracos e cantos e quinas
até pintar de vermelho
o que já não faz sentido algum.

Pó de parede

Angústia é fala entupida
Ana me disse
enquanto eu abria o livro rosa
como quem brinca de minutos de sabedoria

Hoje choveu a noite toda
e o sol está em aquário
o que eu não sei exatamente o que significa
porque me escondo atrás de mapas e graus e casas

Hoje choveu a noite toda
repito como quem faz um poema
e ontem eu arranquei todo o papel de parede
do meu quarto de menina

E respirei pó de parede a noite inteira
como que pra recuperar
alguma palavra perdida
entre a massa
e as marcas dos pregos que já foram

Acordei doente
a cabeça pesada
a garganta seca
como quem bem inspirou
e expirou
e inspirou
e expirou
durante pouco menos de oito horas
o pó dos dias

Aquela parede já viu tanta coisa
e teve seu fim na sacola plástica
do super mercado

A vida é uma bagunça
me disseram

Uma bagunça de pus nas amídalas
de nó nos encontros
de mãos bonitas que se apertam
e se soltam
e se perdem

E de outras mãos que chegam
e se prendem
e se arranham
e se perdem de novo

Todas, tudo
o tempo todo
indo embora

A vida é uma bagunça
eu anotei no canto do caderno
mas é disso que somos feitos.


Só pela história

Só pela história

Eu era capaz de muitas coisas
de atravessar a cidade
de mergulhar em piscinas sujas
de escolher trilhas estranhas
de ir pelo caminho mais longo
de varar a noite em espuma
só pra poder sentir

Eu era capaz de muitas coisas
pelo buraco no estômago
pelo coração descontrolado

Forço
cutuco
simulo
cavo

Trombo com um sorriso
e ligo o rádio
coloco um samba triste
declamo poesias eróticas
no meio da sala

Tiro fotos sem roupa
pensando em você
enquanto desenho na minha pele
um rosto que não existe
porque eu o inventei

A boca vermelha
um quente no meio das pernas
e de repente eu sinto vindo
de novo

A sensação
experimentada pela primeira vez aos cinco anos de idade
quando me apaixonei pelo menino da casa da árvore
e não deu certo

(Ele foi pra Tailândia
e tudo o que guardo é a foto de um elefante)

Então escrevo
pra que todos os países distantes que me espreitam façam sentido
Enquanto repito que é mesmo melhor amar, sofrer, chorar

E obedeço
honro o sobrenome
desgrudo a unha da carne de propósito
me derramo em lençóis de cama
faço carinho em estranhos

E amo em mim outros corpos
só pra escrever cartas de amor pra ninguém.

La La Land ou Time is a bitch

[SPOILER ALERT]
La La Land, assim como praticamente todos os meus filmes preferidos, dispensa o happy ending.
Apesar da atmosfera bonitinha, das cores, do ar retrô e do clima de musical, sempre irreal e mágico, La La Land é um filme implacável sobre o tempo (não por acaso é dividido em estações).
Time is a bitch e isso todo mundo sabe bem. Mas mais do que só sobre o tempo, essa injustiça em forma de ponteiros que ora se cruzam, ora se desencontram sem que se possa fazer muita coisa, La La Land é sobre possibilidades, sobre encontros e sobre ter coragem.
Mia e Sebastian se encontram por acaso no trânsito caótico e se reencontram quando ela é atraída pelo som de um piano. Quem está tocando? Quem? Quem? Isso mesmo: Sebastian. O clichezão hollywoodiano. E não podia ser diferente. O clichê, aliás, é um elemento importante da trama e não poderia deixar de existir. O que faz com que a gente fique um pouco bobo, sorrindo e chorando ao mesmo tempo, no meio cinema. Quase dá uma esperança na vida. Quase. Os personagens estão em Hollywood, em busca de algum tipo de holofote, de reconhecimento, de uma vida adulta minimamente suficiente. Os caminhos, no entanto, são tortos. Assim como são também as ruelas sujas e sem saída do lado de cá da tela grande.
Nós somos Mia e Sebastian. Sonhamos e sofremos e o sofrimento nos movimenta. Ou, quem sabe, somos a tia da Mia, que pula no Sena congelante sem pensar duas vezes, em uma das mais belas cenas/músicas do longa. Here's to the fools who dream/ Foolish as they may seem/ Here's to the hearts that ache/ Here's to the mess we make.

La La Land não é uma história de amor. Ou pelo menos não é só uma história de amor. Quem for procurando por isso sairá do cinema frustrado. La La Land é uma história sobre expectativa e realidade; sobre sonhos que mudam de nome e endereço; sobre o quão bagunçada é essa coisa chamada vida; sobre deslocamentos bizarros que vivemos e sobre pessoas que perdemos enquanto estamos muito ocupados escrevendo nossa própria história.


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