De dentro do ser-tão ou Você tem que ler Grande Sertão: Veredas

"Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou." (p. 39)



Chega essas época do ano e eu vou me desencantando. Quero abrir as gavetas, jogar fora bilhetes, relembrar cartas de amor cuja validade já venceu faz tempo. Nessas idas e vindas desse ano maluco e bizarro que foi 2011, deixei de ler muita coisa que eu queria, escrevi uma monografia que me fez descobrir cantos de mim mesma que eu antes desconhecia, descontei o aperto no peito em cigarros comprados soltos, que é para o vício nunca chegar por aqui. Perdi um cachorro e ganhei um gato, nem mal me formei e já estou desempregada. Coisas da vida real. 
A questão é que a essa hora de um domingo natalino que tem sempre um gosto que eu não suporto - as bolas vermelhas penduradas em árvores de natal de mentira não soam artificiais pra você? - resolvi colocar em dia as frases selecionadas nos livros que eu li esse ano. Quando eu era mais nova e o tempo parecia render um pouco mais, terminava de ler e já corria escrever os trechos em um documento do word que carrego comigo desde 2000. Esse ano, só agora tive coragem de puxar os livros da estante e ir pescando, página por página, as frases que fizeram sentido durantes a leitura. De García Márquez a livros infantis que li para a disciplina de literatura infanto-juvenil, parei em Grande Sertão: Veredas. Só esse nome me estremece. Grande ser-tão: Veredas. Mal começo a falar sobre ele e já sinto uma bola se formando na minha garganta. Uma bola Guimarães Rosa, que não é palavra-dita mas pulsa feito sentimento vivo, neologismo do coração.
Você tem que ler Grande Sertão: Veredas. É tudo o que consigo dizer. Antes dele, eu nutria um preconceito imenso por Guimarães Rosa porque julgava que histórias de jagunços não eram pra mim. E não são, de fato. Mas Grande Sertão é muito mais que isso. Ouso dizer que é a mais bela história de amor que eu já li até hoje e acho que dificilmente lerei algo tão intenso e  comovente como esse romance vai e vem, que constrói e desconstrói os caminhos de ser-tão e às vezes não saber pra onde ir. Travessia.
Você tem que ler Grande Sertão: Veredas. Esqueça o que te foi dito na escola, se estudar literatura, ignore as aulas sobre ele. Só leia e sinta. Deixe Riobaldo contar a história que nunca na vida alguém vai conseguir contar parecida. Esqueça o marco-na-literatura-brasileira que isso tudo são coisas que inventam pra gente entender o que é inteligível: lembre, diga, o sertão é dentro da gente.

Quando você vai embora


Quando você vai embora, pressinto acidentes fatais, doenças terríveis, mal súbitos. Tudo pra sofrer mais a sua partida, a minha estadia solitária. Meu coração ora parece querer pular do peito, ora desacelera em uma clara tentativa de também sentir dor. Toda a cidade parece querer colaborar com o quadro preto & branco que vou pintando por dentro. Choveu um pouco à noite, uma garoa fina, meio lacrimal. Antes disso, o céu claríssimo insistia em continuar claro eternamente só pra fazer com que nosso programinha filme-no-escuro não acontecesse logo. Quando você vai embora, o cinema francês fica mais triste ainda e eu fico mais neurótica por não entender direito o que os personagens dizem. E você me olha e ri, que sou boba e que tudo bem não entender francês direito. Mas não, não está tudo bem, porque você vai embora.
Quando você vai embora, choro pelo tempo junto, pelo segundo que os corpos se distanciam no sono, pela sua sobrancelha tão bonita que se arca de um jeito diferente quando você dorme. Choro pelo seu olhar de menino, pelo seu sorriso doce, pela sua carência que é tão a mesma que a minha.
Quando você vai embora, dramatizo a realidade e viro novamente a menina que eu costumava ser quando amava aos 14 anos. Maldigo Deus e o mundo, peço abraço de mãe e, assim que chego em casa para passar o primeiro sábado que eu não irei pra sua casa depois de sair da aula de francês, fico abraçada com o meu gato como se ele fosse o Nounouse do Para uma menina com uma flor.
Quando você vai embora, encarno Vinicius e fico mais bossa nova do que um disco inteirinho do João Gilberto. Também não tomo café da manhã, não atendo telefones, não me olho no espelho. A única coisa que faço é pensar que sim, você foi embora.
Quando você vai embora, apago o passado, esqueço as falhas, te amo inteira de novo. Quando você vai embora, o amor não se acostuma mais com o tempo. Quando você vai embora sou a própria felicidade clandestina e, por alguma razão que nunca vou saber ao certo, passo a te amar ainda mais, muito mais ainda, quando você vai embora.

Isso não é literatura

(para se ler ao som de Se puder sem medo , de Oswaldo Montenegro)


Mas é isso. É Oswaldo. É uma grande merda, na verdade, mas é lindo ao mesmo tempo. Porque tudo é de um destino muito certo-incerto.
Todos nós, perdidos em cima de tantos corpos, temos tudo pra dar errado. É quase como se o “nós” nunca pudesse terminar uma frase sem se quebrar em mil partes.
Somos frágeis.  Nos perdemos no meio de tanta sede, tanta insatisfação.
A vida, os filhos, a rotina, a falta de vontade, o cansaço, o trabalho, a falta de sintonia.
Nada me parece tão triste do que casais que não se falam e nem se olham nas mesas de restaurantes. E eles existem aos montes, pra esfregar na cara dos casais-ainda-felizes, brincando de mostrar a comida já mastigada um pro outro ou tentando colar a colher no nariz que é esse o destino deles. Um vazio gigante e profundo do lado de alguém que um dia você chamou de amor.
Tudo colabora pra fazer dar errado.
Mas alguma coisa, em algum lugar, faz com que as pessoas – e são poucas! - queiram tentar. E construam de novo e de novo e assim pra sempre,  por toda manhã. É preciso aprender a desapaixonar e se apaixonar novamente. As relações são cheias de contradições. Não existe plenitude sem a consciência da ausência.
Porque é isso, construir toda manhã: fazer apaixonar toda manhã. E isso não envolve necessariamente cafés na cama ou flores esparramadas pelo quarto, inclusive tenho a teoria que são os babacas os mais aptos a fazer agrados desse tipo. Quando digo fazer apaixonar pela manhã, falo de uma dança inconsciente de pés se acariciando por debaixo dos lençóis cheirando a dois corpos. Falo de respiração na nuca, de beijo no olho, de encostar a cabeça no peito do outro pra ouvir as batidas do coração pelo simples fato de precisar de alguma prova real de existência. Uma epifania, que abre o olhar de cada um pra enxergar a manhã como uma possibilidade e não como uma obrigação. E a possibilidade do amor é doce.
E é dificílimo. Eu olho pras pessoas e algumas são péssimas juntas. Tem-se   preguiça um do outro. Simplesmente não fazem mais questão. Porque, como já percebi na minha primeira decepção amorosa, lá pelos 7 anos quando o menino do qual eu gostava foi morar na Tailândia com a família, só o amor não é o suficiente.
Nunca foi.
E é horrível de saber, mas, de alguma forma, é bonito de viver. Porque o agora, as pequenas coisas, são tudo o que a gente tem. E essas coisas ficam esquecidas, se perdem em coisas chatas, que deveriam ser menos importantes.
Mas enquanto elas ainda existirem – as pequenas coisas – há razão pra se tentar. Pra mim, isso é que deveria se chamar amor.

(escrito no começo do ano, mas nunca fez tanto sentido quanto agora)

Carta aberta para um amor bem perto

Me peguei pensando em você. Digo isso de modo a não parecer uma hipérbole ambulante que te respira em cada traço de caneta ou piscar de luzes.
Na verdade penso em você em cada segundo que o relógio roda e em que você não está aqui.
Você não está aqui. Mas posso jurar que se eu fechar os olhos - assim - sem grandes esforços, posso sentir sua cabeça tombada em minhas coxas enquanto eu te leio alguma bobagem ou te digo alguma sujeira ao pé do ouvido. 
Eu gosto da nossa cumplicidade, das nossas descobertas, do modo como seu cheiro se mantém em meu corpo depois que a gente faz amor, do jeito que você morde e contrai os lábios quando sente prazer, da intensidade com que você me penetra - sem nem perceber que me invade não só as entranhas, mas a corrente sanguínea, a alma e o coração. 
Você não deve perceber, mas eu perco metade do tempo em que te olho me dedicando em guardar você em várias partes de mim - poros, mãos, vãos escondidos, planícies secretas - para deglutir você enquanto meu corpo grita por um toque, uma respiração no pescoço, um roçar de pernas ou de corpos, dentro dessa saudade que me deixa aflita no meio de tantos lençóis. 
Ergue esse teu rosto que se apoia nas minhas coxas, me arranca a vergonha, a roupa, os cabelos, me tenha com o gosto das palavras recém lidas na ponta da língua ou dos dedos. Desse modo, iremos para a cama com Clarice, Virgínia, Caio, quem pode saber. Quero você dentro de mim. 
Sussurra em meu ouvido algum poema de Vinicius antes de despejar seu líquido que me faz ser sua fêmea & amante & amada & mulher e faz de você O Meu Grande Amor.
Se despeja em mim desse modo. Transborde as vontades, as faltas de amor que ficaram no passado, o desejo de ser eterno.
E morra. Ainda dentro de mim. Conhecendo assim a morte mais doce e bela que pode exisitir: a morte que nasce da cerimônia doadora de ser.
Te sou e te sinto em mim como nunca.
Sempre sua,

Layse

madrugada de 21/01/2010

Como (não) ser um escritor

O caminho entre ser um escritor e tornar-se um escritor é menos óbvio e auto-explicativo do que parece. Superficialmente, ser um escritor é nascer com a alma na ponta das palavras. Tornar-se um é saber colher palavras na ponta dos dedos. Clarice, com certeza, faz parte do primeiro grupo. Enquanto João Cabral de Melo Neto, do segundo. 

Descobri o que eu queria ser lá pelos 14 anos. Naquele momento eu era apenas uma menina que nunca soltava os cabelos, matava aula pra fumar e queria viver muito pra ter histórias pra contar. Nesse período, escrevi muito. Textos horríveis, é fato. Sem a melhor qualidade estética. E o fato de julgá-los sem qualidade estética com os olhos de agora só me faz ser mais intelectualóide e menos escritora.
Eu queria ser escritora. Ganhar dinheiro nem me passava pela cabeça. Eu só queria escrever. Nos meus delírios ultrarromânticos da adolescência, tudo o que eu queria era uma máquina de escrever, um cigarro e um café. O espaço, o tempo, os personagens... tudo conspirava pra construção de uma boa história.
Cresci, as coisas começaram a se mostrar um pouco mais preto e brancas do que eu imaginava. O que fazer pra ser uma escritora? - Letras, claro. Nada me parecia mais óbvio.

Como não ser um escritor

Estudar literatura me afastou da própria literatura. Literatura não tem nada a ver com teorias estruturalistas, historicistas, ou sei lá de que caralho a quatro resolverem chamar. Literatura é carne viva. Hoje, prestes a terminar o último ano do tão idealizado Bacharelado em Estudos Literários, sinto que o mais fundo que consegui alcançar foi uma pele morta e seca, cheia de palavras escolhidas e conectivos que fazem o autor do texto - no caso eu - parecer inteligente.
Estudar literatura é uma grande furada. Não me julgue mal. Tem sim seus momentos de glória. Mas agora, pra mim, não passa de uma grande furada.
Estudar literatura me fez perder a inspiração. Não consigo mais pensar livre, não consigo mais escrever livre. Não sei mais o significado de fruição. 
Leio Caio e não consigo simplesmente suspirar como fazia aos 14 anos. Dormir com o livro na cabeceira agora tem outro significado - geralmente apegado a trabalhos inúteis e a livros que eu não leria por vontade própria. Ao invés de acordar no meio da noite com uma frase incrível que faria muito sentido num conto que eu jamais escreverei, acordo no meio da noite com a ideia de um artigo científico incrível pra apresentar em um congresso no qual 0,1% das pessoas prestam realmente atenção no que você quer dizer. A maioria, e inclusive eu, estão ali pra enriquecerem o maldito Currículo Lattes e conseguir um Mestrado-Doutorado-com-bolsa-dar-aula-e-ser-(in)feliz.
Vida acadêmica é uma merda.
Eu era mais feliz burra, inocente, fumante de bares com salsicha em potes de conserva, bêbada nos fins de tarde e ainda bêbada nos começos de manhã. Eu era mais feliz escrevendo, só escrevendo. E lembro de um texto meu em que eu dizia no final - em menção a um poema de Ana C. - Não, isso não é literatura.
Agora, minhas palavras vêm carimbadas. Isso é literatura. Isso almeja ser literatura. Quem a escreveu já leu esse e aquele livro e sabe quem é Afrânio Coutinho, Alfredo Bosi e o babaca do Massaud Moisés. 
A literatura deixa de ser literatura quando começa a ser levada muito a sério.
Do alto do meu quase título de Bacharel em Estudos Literários, nunca quis tanto dizer: meu cu pra tudo isso. Nunca tive tanta vontade de sair correndo.

Nunca tive tanta vontade de não fazer literatura pra, finalmente, conseguir fazer literatura de novo.

Gaveta - Um dia qualquer no começo de 2010

Ando tão pequena dentro de mim mesma. Vírgula perdida dentro de tantas orações. Súplicas apaixonadas e suspiros cansados de quem tanto corre pra chegar sabe-se lá onde.
O pouco que eu sei que tenho é doce e só sabe fazer meu sangue errar de veia. E penso que desde sempre, quando eu só era uma criança boba, eu pedia: só quero meu sangue a errar de veia, errar de veia, de, errar, errar, veia, veia, veia. Sempre isso. Essa ilusão interna. Essa maldita ilusão interna. Maldita e bendita ao mesmo tempo. Porque só sou eu dentro desse corpo que só sabe aprisionar devido a isso. Isso que eu não sei bem o que é. Isso que no final das dúvidas deve me ser. Crua e inacabada. Pura e sem gelo.

Dor:

“Fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe.” (p. 50)
in  Clarice,  (Benjamin Moser)

Silêncio

Para se ler ao som de Where is my Love – Cat Power
Era incapaz de machucá-lo. Por isso, dava voltas na sua verdadeira vontade, engolia o aperto no peito, a “farpa na parte coração dos pés”.
Passava os dias bem, não tinha problema algum em lembrá-lo com carinho. Inclusive o fazia com frequência. Pensava nele quase o tempo todo. Sonhava com a sua voz, tocava-se pensando nos seus dedos, fechava os olhos e sentia o seu cheiro.
De alguma forma - ela não sabia e mal consigo explicar também - as coisas se perderam. Foi isso. Aconteceu o que geralmente acontece com os amores incuráveis: Eles acabam se curando.
De repente o pensamento bagunça todo, ela sorri de lado, busca o cigarro na bolsa que tem espaço demais perto das poucas coisas que carrega – um celular já antigo, um bloco de notas para rompantes de inspiração que nunca foi usado, o batom já cheirando a velho, o maço de cigarros. Nunca carregava isqueiro. Gostava de pedir emprestado, no entanto não suportava quando alguém estendia as mãos para acender o cigarro já preso entre os lábios.
Quando será que parei de te amar?
Acende outro cigarro. Um atrás do outro com o isqueiro do garçom.
Eu não sei onde larguei o meu gostar por você, meu amor.
_

Eu não sei. Não sabe do quê? Não sei mais. Não sabe mais do quê? Só não sei.
Ele a olhava com uns olhos de culpa e compreensão.
Ela remexia na bolsa compulsivamente.
Você tem um cigarro? o meu acabou. Não tenho.
_
Eu olho pra você e de repente tudo o que vem é um vazio imenso de amor. Um vazio que nada entende e cala. Existe um momento, dizem. Eu não sei qual foi esse momento, o que eu sei é que eu te olho e tenho vontade de gritar, porque não me vejo no seu corpo e quero sair daqui correndo, porque de repente nada do que você diz faz sentido com o que você faz e é, ou era, ou não sei mais, e tudo o que eu sentia por você ser se perde em linhas de contos mal feitos, em romances vagabundos de banca porque o meu gostar por você se perdeu em gavetas mal cheirosas, na poeira de trás da estante, não me olhe assim que eu quero te dizer, eu quero te dizer uma porção de coisas, de vazios, de silêncios, que eu te odeio às vezes, que vez em quando eu não consigo sentir, eu simplesmente não consigo, tudo o que ouço é um monte de palavras disfarçadas, eu não consigo sentir, aqui, você tá vendo, não desvia o olhar, não consigo sentir seu amor e ontem, quando saí, você lembra que eu te disse que tinha saído, lembra, eu te disse, você disse que não iria, precisava ler, estava cansado, tinha acordado cedo, ia dormir tarde, precisava estudar, ficar sozinho, ficar sozinho você disse, aquele dia, ontem, eu  acho que parei de sentir por você o que achei que sentiria pra sempre e, eu queria muito te dizer, eu dormi com alguém e de repente nada mais faz sentido e pensando agora em tudo o que eu queria te dizer, percebi que talvez eu não te ame mais.
_
Ele a olhou bem fundo nos olhos – não suportava quando alguém a olhava assim. Beijou-a lentamente, primeiro nos olhos, depois na bochecha esquerda, chegando por último na boca. Beijou-a como raramente beijava, mesmo quando ela pedia de leve, sussurando em seu ouvido me-beija. Desvendou seus cantos, despiu-a lentamente de seus segredos. Mão, dedos, língua, len-ta-men-te. Os olhos dela sorriam de agonia & prazer. Penetrou-a fundo, uma dor bonita ela sentiu. Derramou lágrimas no lugar de derramar  prazer.
Ficaram abraçados, perdidos num silêncio sepulcral.
Eu te amo, ele disse.
Ela ficou calada, quieta, imersa em si mesma. Guardou as palavras do lado de dentro, engoliu a agonia e respondeu pausadamente: Meu menino, eu queria te dizer que.
O quê?
Curto, cortante:
Eu-te-amo.
Beijou-o na testa, abraçou-o por trás, e, com o calor das pernas dele no meio das suas, percebeu que sim, que nunca seria capaz de dizer, que era incapaz de machucá-lo. 

Mais uma de amor ou Home is wherever I'm with you

 Eu não sei mais escrever e até tinha prometido que não, não iria mais escrever sobre isso. Sobre ele, sobre a gente. O amor me estendeu a mão e eu desaprendi das palavras ditas, escritas em páginas amareladas, queimadas pela cinza de um cigarro que insiste em apagar numa noite solitária de domingo.
Escrevo pouco, vivo meu romance interior e hoje sei que a verdadeira sinestesia nasce do siêncio.
Eu não quero contar uma grande história e morrer sozinha. E só hoje eu sei disso.
Encosta a sua mão na minha, porque já é frio e o  inverno me corta a pele de um jeito que existe só em sonho. Me deixa mais uma vez, só por hoje, encostar meu pé gelado na sua batata da perna quente. É você minha figura de linguagem. Minha metáfora vive escondida nos seus cantos, no cheiro dos seus pêlos, no gosto doce e infantil do seu sorriso de menino. Eu não quero escrever uma grande história, repito. Fica só mais hoje, só mais um pouco, o tempo passa, amanhã o dia começa cedo, eu sei, mas só mais um pouco, conta aquela história, canta “home” compulsivamente que eu não ligo, não reclamo, mesmo que seja na mesa do restaurante, mesmo que seja agora, mesmo que seja sempre-sempre. Me abraça igualzinho d’a primeira vez que eu quero sentir seu coração batendo contra o meu, tão-forte, tão bonito de sentir. Fica mais, não vai embora que o mundo engole e a vida às vezes pinta tudo de cores muito sem graças e a realidade só é bonita e sete-vezes-doce quando  divido meus passos com você.
Eu te amo pelos silêncios que não são desconcertantes, eu te amo pela sua entrega em ser meu e pelo nosso amor que não tem nada de resignação. Eu te amo pelas suas falhas, pelos seus erros, pelas suas manias irritantes e principalmente pela sua falta de memória. Diz que me ama de novo, que eu finjo que esqueço pra lembrar pra-sempre.

O amor acostuma

Eu sempre quis sufocar de tanto amor, e na realidade já me sufoquei muitas vezes no começo das relações – quando a mão sua, os olhos mexem de um jeito estranho, as palavras tropeçam nas ações e a coisa toda é tão incerta que a única certeza que existe é a do momento atrapalhado que se vive. Esse momento é o mais puro que a paixão nos deixa. Paixão é lembrança.
Tenho pra mim que a paixão é travessia pra uma coisa nova que está pra chegar, um amor calmo, um amor que eu sempre quis sentir: um amor de não-doer.
Eu, que definitivamente ainda não aprendi a viver a felicidade de um jeito certo, só sinto o meu sangue errar de veia e o corpo tremer todo quando uma outra possibilidade de realidade me aparece: a perda. Saber que eu posso perder alguém  - e isso engloba todos os tipos de relações afetivas – faz com que eu jogue pro alto, sem nem pensar duas vezes, o meu orgulho e esses tipos de caprichos bobos que as mulheres adoram cultivar.  É a ideia da perda que me move a acordar no meio da noite e beijar a nuca de quem comigo divide a cama, sussurrando logo em seguida um eu-te-amo que provavelmente não será ouvido. Nós nos culpamos por não saber usar o amor em todo o segundo.
A questão é  simples: a rotina sufoca a realidade da perda. No alto da nossa prepotência humana de acharmos que somos imortais e que todas as pessoas que estão a nossa volta também vão durar pra sempre, o dia a dia apaga lentamente com seus defeitos e irritâncias a possibilidade da ausência. É como naquela curta de Paris Je t’aime, em que o marido vai terminar com a esposa e quando encontra com ela pra falar sobre isso, ela conta a ele que está com um câncer terminal. Durante a conversa ele relembra toda a história dos dois, cada momento, cada alegria triste, cada doce-amargo de casal, tudo-tudo, e acaba se apaixonando por ela novamente. Apaixona-se por meio da ausência! E, de alguma forma, isso é incompreensível pra mim. Mas agora, enquanto te sei indo pra longe daqui, nunca estive tão consciente do nosso amor.

Tudo o que duramente passa


leite, leitura,
letras, literatura, 
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo,
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura.
(Paulo Leminski)



O dia em que o cachorro que queria ser gente morreu

1997
Volto a ser a mesma criança de sete anos que te pegava no colo e não queria nunca mais soltar, que colocava camiseta pequena na sua cama pra você não sentir minha falta à noite, que chorava pra você quando ninguém mais me ouvia.
Não consigo ser adulta, ainda tenho sete anos dentro do meu coração.
Dentro da minha realidade você ia durar pra sempre, ia correr saudável com os meus filhos e morrer de ciúmes deles de tão egoísta e neurótico que você era. Que horrível te lembrar em passado. 
Não lembro de como era a minha vida antes de você. 
Hoje é a primeira vez em 14 anos em que entro em casa e você não está deitado na caminha, nem esperando a gente na porta - você sempre sabia quando estávamos chegando.
Você ainda está em todos os lugares, na ração que já não conseguia mais comer, no pote de água em que esbarrava sem querer por já não conseguir mais enxergar, no seu cantinho do xixi que sempre amanhecia todo sujo porque você não conseguia mais saber onde estava. 
Eu vou sentir tanto a sua falta, Pitt. Muitomuito mesmo. Nunca mais vai existir um cachorro tão gente assim. Vou sentir falta até das suas crises de mau humor repentino que renderam várias mordidas e lágrimas de chateação. Como é que um cachorro tão bem cuidado é tão bravo assim? Mas a gente sabe, Pittico, a gente sabe o quanto você amava a gente, o quanto cuidava... O quanto ficava nervoso e latia sem parar quando eu chorava por algum motivo.
Eu nunca vou esquecer de você, filhinho. Nunca-nunca. 
Escrevo pra guardar cada coisinha - o modo doce como você ia me acordar pra me levar na escola, o susto da sua primeira tosa em que eu e mamãe achamos que tinham mandado o cachorro errado, as birras porque às vezes não fazíamos o que você queria, a sua boa relação com gatos e o seu ciúme da caminha, da roupinha, da gravata e de tudo o que ficasse por mais de meio segundo do seu lado.
Você morreu me olhando e quero guardar o seu olhar pra sempre dentro do meu peito, bem rente ao coração.
Sou a mesma criança que aos 7 anos dizia pra todo mundo que você se chamava Pitt Pitoco Pitucho Barnabé de Moraes Boldrini Pinto e que escreveu na redação da escolinha que o que mais gostava em você era o modo como você sorria.
Desculpa, Pittico. Pela falta de paciência em alguns momentos e por todas as outras pequenas coisas. Eu te amei muito. Eu te amo muito. Ter você por 14 anos na minha vida foi um jeito bonito - e doloroso agora enquanto digo e te imagino já bem longe daqui - de aprender o quanto os animais nos ensinam da forma mais sincera o significado de amor e carinho. 
Era pra ter sido você, meu poodle que queria ser gente. 
Eu que sempre te carreguei no colo, agora te carrego do lado de dentro. 
Vai Pitt, vai ser cachorro num mundo mais bonito que esse.

(04.01.2011)
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...