Vigília

Noite passada, encontrei com a morte. Surgiu do nada, que é a forma mais dolorida de sua manifestação. Com um telefonema, fui avisada que a minha cadelinha Amélie tinha tomado 26 comprimidos de um remédio para tireoide. Amélie, doida que sempre foi e provavelmente sempre vai ser - já que mesmo castrada e com mais de um ano ela ainda arranca sorrisos e gritos com cada coisa que apronta - tomou quase a caixa toda. Deixou apenas dois comprimidos, como quem ainda almeja a desculpa e os olhos baixos de não-fui-eu.
Todos os meus mortos voltaram na possibilidade de morte da minha Amélie. E  sofri até por aqueles que estavam vivos, uma dor antecipada pela certeza da partida. Partida. Eufemismos que a gente usa pra tampar o buraco no meio do peito que fica quando alguém vai embora.
Eu não sei lidar com a morte, choro desde pequena pedindo pra morrer antes da minha mãe. Perdi um cachorro de 14 anos recentemente e foi uma das dores mais fortes do mundo - tão grande que eu às vezes podia vê-lo pelos cantos da casa. Perdi avô, sobrinho, amigos de infância, familiares de amigos. Sofro pela morte até daqueles que não conheço. Fico sem dormir, procuro cama e colo de mãe.
Me disseram: “Está tudo bem. Ela não vai morrer. Você já perdeu o Pitt e sobreviveu.” Mas com ela é diferente. O passado traz consigo resignação, enquanto o presente só carrega agonia. Com ela é diferente.
Chorei de soluçar por três horas pensando na possibilidade da Amélie de repente não estar mais comigo. Alguns leitores podem julgar o que digo como exagero, mas só tenho a lamentar quem nunca sentiu esse amor animal pleno que dá sem pedir nada em troca.
Amélie dorme comigo, acorda me lambendo o rosto e às vezes a boca, fato que reprovo, mas de repente ela me olha e o olhar dela diz tanto que eu me entrego às demonstrações de afeto.
Pedi logo depois da morte do Pitt: uma cadela peludinha, preta e branca (pra fazer mimetismo de amor com o meu gato), que fosse carinhosa e me lambesse. Veio a Amélie. E essa é a mais pura verdade: Amélie é meu presente.
Amélie com 26 comprimidos no estômago. Na bula: superdosagem causa arritmia, taquicardia, convulsão, coma e até a morte. Eu queria ter tomado os comprimidos por ela. Rezei pra todos os santos em uma prece burra para que todos os seus sintomas passassem pra mim.
No veterinário, chorei mais ainda quando ela não reagiu ao estímulo de vômito. Amélie é assim, só faz o que quer.  Ela é especial até nessas situações. Voltei pra casa e fiquei colocando na boca dela o tal do carvão ativado e a cabeça dela caía, ela não conseguia andar, me olhava e chorava, estava gelada. Pela primeira vez nesse 1 ano e 2 meses de vida, não foi a Amélie que subiu na minha cama e veio ocupando todo o espaço, me chutando pra eu chegar um pouco mais pra lá. Eu é que coloquei o colchão no chão, de modo que ficasse bem perto da caminha que montei pra ela. Caminha que ela nunca usou, porque comeu o zíper todo no primeiro dia e tem uma fixação sexual por ela. Mas deitou nela ontem, entregue. Fiz vigília. Passei a noite toda com a mão sobre o seu coração, contando compassos como nas aulas de piano. Acordei no susto, algumas vezes achando que não sentia as batidas ou sua respiração. Chacoalhava Amélie e logo ela respondia com um resmungo.
Amanheceu. O dia trouxe a claridade necessária e a certeza de que realmente essa cadelinha é mais forte do que parece. Também trouxe a convicção do quanto eu sou fraca, do quanto a própria existência é frágil. Um descuido: acabou. Estou ainda na cama, com ela ao lado. Ainda controlo a respiração e as batidas do seu coração - apesar de ter a certeza de que o meu está muito mais acelerado do que o dela.
Noite passada, encontrei com a morte. Mas me encontrei também com a dor pungente de todos os meus mortos e com a alegria incabível da presença bruta dos meus vivos.
Mesmo que passe, mesmo que não doa mais, a consciência da vulnerabilidade grita por dentro. E meu grito é palavra.

(De repente a gente vê que perdeu - ou está perdendo - alguma coisa, morna e ingênua, que vai ficando no caminho)

9 comentários

  1. chorei.

    e espero desesperadamente que Amélie fique bem.

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  2. Minhas lágrimas derramaram de desespero conforme eu lia. Sei como é esse amor animal, e invejo essa proximidade. Ela vai ficar bem, sim!

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  3. Ai La chorei no trabalho!
    Mas saiba que esta corrente de bons pensamentos vai fazer esta ser só mais um história louca da Amelie... Quem teve este amor verdadeiro sabe exatamente o que você está sentindo, mas vai ficar tudo bem. Saudades! da um grito chegando em sampacity! Beijocas

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  4. Lá ate a mais triste das historias vc consegue transformar no mais lindo dos relatos. Tenho certeza que ela vai Ficar bem, ela é muito forte. Vou rezar por ela. Amo você! Beijo

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  5. Me lembrei de tudo que ja passei com os meus. Desespero define.

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  6. Lindo. Tocante. Adoro a forma como escreve. Meus parabéns.

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  7. querida, sempre soubemos que esse jeito espoleta da Amélie é, em primeiro lugar, forte! dessas "pessoas" que a gente encara e a primeira coisa que conseguimos definir é que a sua personalidade é forte! Amélie queria saber o que são comprimidos, queria saber o que acontece, e soube. ela sabe também que só sobrevivendo para contar para os outros como é. de susto em susto, Amélie vive. e ama gatos, como a mãe. fique bem, porque pela sua descrição Amélie já está. no que precisar, conte comigo! e parabéns pela belíssima forma que escreveu. um grande beijo, sila.

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  8. Muito bom, Layse! Reconheço-me nas linhas escritas e até nas entrelinhas... Para os que amamos desejamos a vida eterna, nunca estarei preparada para ficar sem eles, a dor da perda não tem cura, por vezes descansa mas nunca desaparece.
    Abraço

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  9. Não, não é nada exagero. Também sofro com a morte, também amo meus cães, também sofri com os que se foram.
    O que dizer? Não sei... Também me emocionei, como tantos que leram teu texto.
    Bela sensibilidade, que transborda em uns e falta em outros.
    Abraços.

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