Alan Pauls, seu filho da puta


“De que em matéria de sentimentos não há como estabelecer limites rigorosos, não há fim, nada nunca termina realmente, tudo permanece dependente, indefinido, em estado de espera, e mesmo no caso de uma relação que termine, no sentido de que se rompa e cada membro seja ejetado numa direção diferente e tudo aquilo que possam ter compartilhado se dilacere e se divida em duas metades irreconciliáveis, mesmo neste caso, por mais um ou ambos reivindiquem o rompimento no momento mesmo em que ele se consuma, justificando-os com fatos, causas, argumentos convincentes, nenhum dos dois jamais terá condições de saber positivamente se isso, a cujo fim dizem assistir, termina de verdade ou só faz uma pausa para entrar em outra fase, por exemplo, de latência.”

(O passado, de Alan Pauls, p. 453)




Guia ilustrado das memórias de 2013

Um filme: Frances Ha

Outro filme: Antes da meia-noite

Uma série: Orange is the new black

Outra série: Girls (2ª temporada) [o gif é da primeira temporada, mas achei de extrema relevância]

Um disco: If you wait - London Grammar

Um show que não fui: Cat Power

Um livro de 2013: A maçã envenenada, do Michel Laub

Outro livro de 2013: Todos nós adorávamos caubóis, da Carol Bensimon

Mais um livro de 2013: Ligue os pontos - poemas de amor e big bang, do Gregorio Duvivier

Um livro de poemas de outro ano, lido em 2013: Água para viagem, da Lorena Martins

Um livro de outro ano, lido em 2013 (e a leitura mais dolorida dos últimos tempos): Lavoura arcaica, do Raduan Nassar  [falha de caráter grave não ter lido antes]

Outro livro de outro ano, lido em 2013: O passado, do Alan Pauls

Um livro que não saiu da minha cabeceira: José e Pilar, do Miguel Gonçalves Mendes

Um escritor: valter hugo mãe

Edição mais bonita de todos os livros lidos em 2013: O passado, do Alan Pauls

Um cidade: Berlim

Outra cidade: Paris

Mais uma cidade: Lisboa


Um lugar: Castelo dos Mouros


Outro lugar: gramado em frente à Catedral de Berlim



Uma sorveteria: Bacio di latte (São Paulo)

Um restaurante: La Flauta (Barcelona) [sem foto por motivos de: sangria, mas indico fortemente]

Outro restaurante: Casa de Santo Antônio (Porto) 

Um presente: Cléo 

Um vício: caderninhos

Uma companheira de viagem: 


Um ano: 2013 <3

Sobre abajur e finais de ano

Tenho um abajur vermelho no criado-mudo. Toda madrugada ou manhã eu o derrubo sem querer, porque aparentemente ele é muito alto e sem uma base larga pra se safar da minha descoordenação ao verificar atualizações no celular.
Em que momento, aliás, passou a ser ok conferir atualizações no celular de madrugada? Acordo pra fazer xixi, abro o instagram, confiro os emails. Só spam. E descontos mágicos do submarino que fizeram com que eu comprasse uma caixa de livros que não vou ter tempo pra ler, ou, mais provável, que vou fingir que não tenho nada pra fazer pra ter tempo pra ler. Esse é o grande problema de estudar literatura. Você fica meio que impedido de ler literatura. O que é um grande e absoluto mal entendido.
Além de derrubar abajur toda madrugada, acabei de assistir 14 episódios de new girl seguidos, só parando pra comer pizza - isso talvez explique o fato de eu ter engordado 10 kg em 10 meses. E continuando.
Fim de ano é uma merda. Tenho vontade de limpar a vida toda, esvaziar armários, gavetas e prateleiras. Tudo parece estar no lugar errado. O quarto é pequeno e quente, os postais fazem curvas porque não estão presos nas quatro extremidades, os quadros caem das paredes por conta do meu TOC em nunca pendurá-los com pregos, e sim com fita adesiva que não funciona. Na pior das hipóteses, ainda temos pizza. O que é absolutamente ótimo.
23:41 de uma sexta e eu estou chapada de neosaldina e ainda me recuperando no Natal. Nunca chorei tanto. Mentira, já chorei, sim. Mas chorei consideravelmente no dia 24 de dezembro. Só parou quando me disseram: “apenas pare, o Natal acabou nos anos 90”. E isso fez um sentido enorme.
Odeio natal desde 1995, quando pedi uma boneca gloob gloob, que bebia suco e fazia xixi, e ganhei a bebê dentinho, que saltava os dentes de baixo quando alguém apertava sua mão esquerda - que tipo de pessoa compra um presente desses? Papai Noel acabou aí. Natal também. Minha mãe abriu o jogo: “É, Papai Noel não existe mesmo, eu deixei pra ir na loja na véspera e só tinha essa. Achei que ia gostar”. Nunca relei na boneca. A partir daí, open de drama na ceia e na vida. Merdas na primeira infância: só com muita psicanálise pra resolver.
Já já é ano novo, mais bad. Mas com um pouco menos de intensidade depois que descobri as bebidas alcoólicas (e isso já faz um tempo). Dia 2 de janeiro, quando tudo parece voltar ao normal, sempre me dou conta de que acaba de começar meu inferno astral. O que faz tudo ser bad outra e outra vez.
Vim escrever agora, nesse ano em que escrevi tão pouco, para simplesmente evitar o término de um livro que estou gostando muito. E dizer isso parece meio deslocado, mas é isso que tenho feito a vida toda: deixando de fazer as coisas das quais eu gosto muito pra que elas  durem mais. O que não faz nenhum sentido. Mas é assim: tenho timing errado pra vida. 
Talvez isso não seja verdade. Essa coisa de ter timing errado e coisa e tal.  A verdade única e incontestável é que eu sou uma reclamona incurável que não sabe muito bem o que fazer além de sofrer um pouco ouvindo London Grammar nesse 2013 que foi tão bom comigo.  Provavelmente vou continuar assim no próximo ano - neurótica grave e um pouco melancólica. Espero que escrevendo mais.


Carta para Vinicius

Hoje é centenário do Vinicius, meu poeta preferido bem antes de eu saber direito o que é ser um poeta. Achei aqui uma carta de 2008, quando eu tinha 18 anos e era mais piegas do que eu sou hoje. Me cocei pra mudar algumas coisas no texto, mas deixei tudo exatamente como estava. O fato é que a carta foi escrita para o Vinicius depois de um sonho que eu tive com ele - um dos mais reais da vida toda. Sua bênção, Vinicius! Saravá!

Vinicius de Moraes, poeta de coração puro e de tristezinha funda cravada no fundo d’alma, venho por meio desta tentar te dizer algumas coisas que tô pra te dizer faz um tempão, desconfio até que é um tempo pra lá da minha idade. Mas antes, queria contar do meu sonho.
Sonhei com você essa noite. Foi sonho curto, como deveria ser. Mas foi de uma beleza viniciana exata e palpável. Tocava Medo de amar ao fundo e, de tão lindo que estava, eu chorei. Não sei se chorei por ser aquela coisa tão sensível de virar a folha do livro e esquecer de alguém ou se por serem palavras construídas da sua boca e do seu corpo todo, o que é a matéria-prima da sua poesia. Desconfio que era por ser o seu medo de amar. Eis que, de repente, não mais que de repente, você aparece do meu lado, com os seus 60 e poucos anos, e aqueles olhos tristes junto com um sorriso doce e pergunta – Isso é meu?
- É seu.
Eu respondi chorando e nem sei separar exatamente o que aconteceu, mas só sei que quando dei por mim estava no seu abraço. E te abraçava sôfrega e alegremente. Você é uma coisa de louco, Vinicius. Como não podia deixar de ser. Seu amor nada líquido rompeu com os limites do corpo, do céu e do pensamento e veio parar bem no meu medo de amar. E eu chorava. Chorava muito! E te dizia o quanto eu gostava de você, o quanto você me sentia e eu te sentia de volta. Você é meu amigo, Vininha. O pai que eu não tive me contando histórias de amor ao pé do ouvido. E você nem falou nada, acho que deve ter ficado tímido... Não esperava essa atitude tão tátil e apaixonante de mim? Me desculpe. Não foi a intenção. É que não me contive. Você tem uns olhos... E o sorriso? É tudo o dualismo perfeito do que não era pra estar junto. E ah, Vinicius, eu gostei tanto de te abraçar. Na verdade, vou ser sincera... eu posso ser sincera, não é? A gente é quase que parente. Podemos fingir que somos. Mas na verdade isso não quer dizer nada. Mas a gente pode fingir que quer dizer só pra ficar mais visível a nossa irmandade de coração. Vou ser sincera então. Eu tive vergonha em uma horinha, mas, me desculpe, não vou poder te contar qual é, porque se tive vergonha em sonho, não é agora em carta que eu vou contar, né? Mas é só pra dizer. É que essa coisa de fraterna que vive em nós não pode perder o encanto nunca nessa vida. E não vai, porque vive em mim desde quando eu era parte da Valsa para uma menininha até quando eu fui a menina com uma flor. Eu cresci com você, Vinicius. Cresci por fora, mas, principalmente, por dentro. Você fez nascer em mim a flor amarguinha da poesia. Se eu vejo tristeza no feliz e felicidade no triste é tudo culpa sua e da bossa e do amor e dessa coisa que me brota no peito e que não tem nome. Ah, Vininha, meu poetinha do tamanho do céu, maior que o mundo todo, eu te abraçava tão forte... E, chorando, vendo só a sua nuca com aqueles fios de cabelos brancos querendo enrolar e um cheiro de areia e sal, eu disse:
- Eu queria tanto ter vivido no seu tempo.
E você de novo não disse nada. Mas não foi por mal. Eu aposto que você devia estar sorrindo, vendo só meu cabelo comprido cheirando doce. Você estava.
E daí eu só queria te dizer, assim, rapidinho, pra você não perder o seu tempo eterno, que ainda é pouco pra quem vive muito, que eu amo você. De um jeito assim, bonito e ingênuo. Mas eu te amo.
E queria ter vivido no seu tempo.
Obrigada por ter vindo me visitar no meu.



De dentro do coração, 

Layse Moraes 

Caixas e gavetas

Arrumar tudo. Limpar. Tirar o pó de trás dos livros, endireitar as pastas, jogar fora a bagunça dos dias. Acordei assim. Com vontade de tirar tudo do lugar pra conseguir deixar tudo direito depois.
Joguei fora agendas, uma pilha de xerox da graduação que eu sempre juro que vou precisar em algum momento e nunca me desfaço, uma coleção de cartões postais que guardei com muito amor por mais de 5 anos e que pareceram extremamente cafonas e de mal gosto quando vi hoje, vários recortes de jornais sem muito sentido vistos agora.
A parte de cima do meu guarda-roupa tá vazia. Coloquei travesseiros e edredons no lugar - porque parece que algum dia a gente tem que crescer, parar de guardar recortes em pastas sanfonadas.
Tá, isso não é verdade. Essa parte de crescer e parar de guardar recortes. Não consigo. Joguei muita coisa fora, mas tem algo que me faz realmente gostar de colecionar memórias. Não são memórias grandes. São coisas bobas e outras nem tanto. Encartes, bilhetes, caixas de fósforo. Às vezes penso: é pra um dia mostrar pros meus filhos quem eu fui. Mas daí lembro que não quero ter filhos e a justificativa se desfaz. É uma coisa minha. Eu gosto de caixas e de gavetas. E de guardar recortes em pastas sanfonadas. E provavelmente vou gostar disso até, sei lá, uns 95 anos - já que as mulheres da família costumam esquecer de morrer.
Entre as coisas que ficaram, um encarte da exposição da Clarice no museu da língua portuguesa, que fui aos 17 anos com a minha mãe; o encarte de “Aqueles dois”, uma das melhores peças de teatro que eu já vi; um marca páginas com um trecho de “Para uma menina com uma flor”; o resultado do TCC; a carta de uma editora sobre uma antologia de poemas que eu participei e que provavelmente ninguém no mundo leu; um encarte da exposição Percurso afetivo da Tarsila do Amaral; recorte de jornal com trechos de “Fragmentos de um discurso amoroso”; marca páginas que andava perdido e que foi presente de uma das melhores amigas da vida; página da Revista Taturana com fotos bonitas; foto da Yoko e do John que ficou de um monte de recortes usados para montar o QG da gincana do colégio (!!!) [ quão bizarro e distante isso soa, deus]; uma foto da minha casa preferida de Londrina, que foi demolida pra que um banco fosse construído; matéria de quando o Saramago morreu.
Toda vez que mexo nessas pequenas recordações eu fico assim. Meio nostálgica antecipadamente, meio querendo pedir desculpas por me desfazer de tanto pedaço solto. É tipo algo estranhíssimo e metafísico que acontece ao lidar de uma forma tão prática com coisas que aconteceram e que foram relevantes e que agora já perderam o sentido ou que até são lembranças legais, mas que é preciso deixar espaço de sobra pra novas caixas - e esse ano tá cheio de novas caixas cheinhas de coisas bonitas.
Tem mais um monte de coisa que ficou. E que talvez vá pro lixo da próxima vez que eu remexer tudo. Mas é isso, não é?  Às vezes é bom deixar as coisas simplesmente irem embora. 

Água para viagem

eu te doo a minha apatia
jogo os cinzeiros sobre a mesa
até os estilhaços
vidro, baganas
e meus pés em falso

eu desvio meu pensamento
 pisando em cacos
mofando a toalha na cabeça
cinzenta
afogando banhos frios.

eu me ofereço pálida
meu amor atordoado
que se queima à
              boca
              do bule
retinta.

eu me concedo ansiosa
guardando dos
livros os trechos que
              me podam
rasgando poemas pela metade
permanecendo chuva
              turva
                  e tua.

Água para viagem - Lorena Martins

Dias raros ou Meu amigo João


Não conhecia João Anzanello Carrascoza. Pelo menos não assim, pessoalmente. Conhecia de palavra na página, de livro na estante. Há sempre uma ansiedade que vem da presença bruta do escritor. Como ele será? O medo da decepção existe, claro. Um ótimo escritor pode nunca deixar um leitor na mão com seus textos, mas coloca muita coisa em jogo quando se expõe como pessoa - e portanto sem revisões, edições, capas e ilustrações.
Carrascoza se aproxima de muitos de seus narradores e personagens. Tem a delicadeza e o lirismo do que escreve e encanta, assim como a sua literatura o faz àqueles a quem a prosa poética apetece.  Uma palavra para sua literatura: doçura - e, atenção, mesmo na doçura há certa dor pungente.
Pois conheci Carrascoza no Autores e ideias, projeto  que acontece sempre na Biblioteca de São Paulo. O assunto da vez foi o conto, gênero pelo qual o escritor mais transita. Entre as muitas coisas que disse: “O romance é como um rio de histórias e o conto, como um riacho - menor, mas igualmente profundo. O conto é como uma metáfora da vida: curto e intenso. Já o romance é a vida que a gente gostaria que fosse. Para mim, o romance é o grande sertão e o conto, as veredas”.
Em cinco minutos de conversa, todo o meu receio já havia passado. Ele não era mais Carrascoza, era João - o que me fez lembrar o título de um dos contos de O volume do silêncio, “Meu amigo João”. João mostra a intimidade multifacetada nas suas narrativas. Pessoalmente, também consegue ser íntimo e próximo. Sua fala alcança, assim como os seus contos; sua voz tem o mesmo cuidado de sua prosa: “Percebendo a vida, eu vejo muitas histórias brotando e se desdobrando e eu tenho vontade de narrá-las.” João disse que escreve lentamente, aproveita a alegria íntima que surge ao perceber que um conto está chegando. Vai reescrevendo, reconstruindo: “Eu faço muito devagar, porque me dá prazer de ir descobrindo a história.”
Confundir escritor com sua obra não é boa coisa e não é essa a intenção. No entanto, tudo o que venho tentando dizer até agora é que me parece muito coerente - e até bonito - que João seja tão parte do mesmo universo lírico que constrói literariamente: “Os traços literários da gente acabam sendo aquilo que a gente é. Minha escrita não é um projeto literário. É um projeto de vida. Eu vim para escrever”. Dá pra perceber, João. Dá pra perceber.

Vigília

Noite passada, encontrei com a morte. Surgiu do nada, que é a forma mais dolorida de sua manifestação. Com um telefonema, fui avisada que a minha cadelinha Amélie tinha tomado 26 comprimidos de um remédio para tireoide. Amélie, doida que sempre foi e provavelmente sempre vai ser - já que mesmo castrada e com mais de um ano ela ainda arranca sorrisos e gritos com cada coisa que apronta - tomou quase a caixa toda. Deixou apenas dois comprimidos, como quem ainda almeja a desculpa e os olhos baixos de não-fui-eu.
Todos os meus mortos voltaram na possibilidade de morte da minha Amélie. E  sofri até por aqueles que estavam vivos, uma dor antecipada pela certeza da partida. Partida. Eufemismos que a gente usa pra tampar o buraco no meio do peito que fica quando alguém vai embora.
Eu não sei lidar com a morte, choro desde pequena pedindo pra morrer antes da minha mãe. Perdi um cachorro de 14 anos recentemente e foi uma das dores mais fortes do mundo - tão grande que eu às vezes podia vê-lo pelos cantos da casa. Perdi avô, sobrinho, amigos de infância, familiares de amigos. Sofro pela morte até daqueles que não conheço. Fico sem dormir, procuro cama e colo de mãe.
Me disseram: “Está tudo bem. Ela não vai morrer. Você já perdeu o Pitt e sobreviveu.” Mas com ela é diferente. O passado traz consigo resignação, enquanto o presente só carrega agonia. Com ela é diferente.
Chorei de soluçar por três horas pensando na possibilidade da Amélie de repente não estar mais comigo. Alguns leitores podem julgar o que digo como exagero, mas só tenho a lamentar quem nunca sentiu esse amor animal pleno que dá sem pedir nada em troca.
Amélie dorme comigo, acorda me lambendo o rosto e às vezes a boca, fato que reprovo, mas de repente ela me olha e o olhar dela diz tanto que eu me entrego às demonstrações de afeto.
Pedi logo depois da morte do Pitt: uma cadela peludinha, preta e branca (pra fazer mimetismo de amor com o meu gato), que fosse carinhosa e me lambesse. Veio a Amélie. E essa é a mais pura verdade: Amélie é meu presente.
Amélie com 26 comprimidos no estômago. Na bula: superdosagem causa arritmia, taquicardia, convulsão, coma e até a morte. Eu queria ter tomado os comprimidos por ela. Rezei pra todos os santos em uma prece burra para que todos os seus sintomas passassem pra mim.
No veterinário, chorei mais ainda quando ela não reagiu ao estímulo de vômito. Amélie é assim, só faz o que quer.  Ela é especial até nessas situações. Voltei pra casa e fiquei colocando na boca dela o tal do carvão ativado e a cabeça dela caía, ela não conseguia andar, me olhava e chorava, estava gelada. Pela primeira vez nesse 1 ano e 2 meses de vida, não foi a Amélie que subiu na minha cama e veio ocupando todo o espaço, me chutando pra eu chegar um pouco mais pra lá. Eu é que coloquei o colchão no chão, de modo que ficasse bem perto da caminha que montei pra ela. Caminha que ela nunca usou, porque comeu o zíper todo no primeiro dia e tem uma fixação sexual por ela. Mas deitou nela ontem, entregue. Fiz vigília. Passei a noite toda com a mão sobre o seu coração, contando compassos como nas aulas de piano. Acordei no susto, algumas vezes achando que não sentia as batidas ou sua respiração. Chacoalhava Amélie e logo ela respondia com um resmungo.
Amanheceu. O dia trouxe a claridade necessária e a certeza de que realmente essa cadelinha é mais forte do que parece. Também trouxe a convicção do quanto eu sou fraca, do quanto a própria existência é frágil. Um descuido: acabou. Estou ainda na cama, com ela ao lado. Ainda controlo a respiração e as batidas do seu coração - apesar de ter a certeza de que o meu está muito mais acelerado do que o dela.
Noite passada, encontrei com a morte. Mas me encontrei também com a dor pungente de todos os meus mortos e com a alegria incabível da presença bruta dos meus vivos.
Mesmo que passe, mesmo que não doa mais, a consciência da vulnerabilidade grita por dentro. E meu grito é palavra.

(De repente a gente vê que perdeu - ou está perdendo - alguma coisa, morna e ingênua, que vai ficando no caminho)

Palavra viva


Eu era realmente terrível quando mais nova. No colégio, lia livros em todas as aulas - nas de exatas, lia porque não gostava, nas de humanas, com uma ou outra exceção, lia porque achava que já dominava o suficiente para ir bem nas avaliações. Pensamentozinho medíocre, hoje eu sei. Mas era o que parecia certo na época. Li Meu pé de laranja lima na aula de física e fui abraçar o professor quando terminei, morrendo de chorar. Ele entendeu e disse que também havia lido o livro quando mais novo. E tudo era mais ou menos assim. Sendo odiada por alguns professores, por outros nem tanto.
Uma coordenadora certa vez chamou a minha mãe para conversar e decretou:
- Sua filha não tem mais jeito.
Eu nunca tive jeito mesmo, minha cara.
O fato é que me deu vontade de relembrar. Isso porque acabo de encontrar aquela que foi a minha professora de português e redação no ensino médio. Encontrei em uma rede social, mas foi como se tivesse cruzado com ela pelo antigo corredor. Rita. Rita é mulher que botava medo em todo mundo sem precisar levantar a voz, lidando apenas com o volume absurdo de uma palavra bem colocada.  Nunca conheci alguém que soubesse tanto da língua portuguesa como Rita. Dava medo. Mas também dava vontade de querer saber.
Rita me alcançou quando tudo o que eu queria era sair mais cedo da aula para beber uma cerveja no bar da rua de trás. Rita me enxergou quando eu mesma ainda não me enxergava. Em meio a vários estudantes disciplinadíssimos, ela um dia disse, em alto e bom som,  que a minha redação era um exemplo de texto que receberia nota máxima na Fuvest. Os estudantes dedicadíssimos chocaram. Eu choquei. E sorri meio boba, quase não acreditando.
Aos poucos, a Rita foi investindo. Conversamos sobre jornalismo, curso que acabei fazendo depois, e ela foi uma das responsáveis por fazer nascer em mim a vontade da palavra viva, que, por coincidência, é exatamente o nome do curso de português e redação que ela dá hoje em dia. Não poderia existir nome mais adequado, Rita.
Esse texto é um suspiro, um nó na garganta, pra dizer que sim: suas investidas me alcançaram. E que me deu até dor de cabeça de tão emocionada que eu fiquei com a sua resposta, que transcrevo abaixo:

“Como me esquecer de olhos que brilhavam frente a algumas metáforas empregadas? Saiba que não a perdi de vista... segui seu blog, textos... Alegria imensa tê-la mais perto. Deus a proteja, muito!! Beijão.”

E vou assim, catando palavras, de um jeito meio torto mesmo, pra fazer essa crônica cujo mote é pequeno, banal, bem típico do gênero, mas o sorriso desse fim de domingo não poderia ter sido maior. 

Sobre o fim das coisas

Meu amor termina na ausência do gesto
na confusão das coxas
no olhar perdido.

Meu amor termina 

às 5 da tarde
talvez de um domingo
em que você não apareceu.

Meu amor termina

no livro esquecido
no cigarro como desculpa 
na vontade de tatear seu corpo
no encontro com o silêncio.

Meu amor termina

na avenida movimentada
no sinal fechado
na espera pelo seu nome 
que não vem.

Meu amor termina porque já não estava mais aqui.


(São Paulo - 03/03/13)

As vantagens de ser invisível

p. 49
Fuçando no skoob, vi um comentário de uma leitora dizendo que esse é o melhor livro que já leu na vida porque foi o que mais mexeu com ela e a fez querer ser uma pessoa melhor.
O livro em questão é “As vantagens de ser invisível”, de Stephen Chbosky, e o que a leitora falou realmente faz muito sentido.
Quem não sabe bem do que se trata pode julgar a história meio bobinha. Inclusive conheço quem deixou de comprar um exemplar por estar na estante de “literatura infanto-juvenil” - como se esse tipo de literatura fosse menor ou soasse rasa para aqueles que já passaram dos 20. Tenho 23 e leio Lygia Bojunga, ou seja. Até aí, bem ok pra mim. O fato é que peguei pra ler esse livro de uma forma meio vou-ler-algo-mais-leve e fui realmente pega de surpresa pela sensibilidade, estilo e opção do autor por construir a narrativa em cima das cartas do protagonista para alguém que a gente não faz a mínima ideia de quem seja - e que talvez possa ser visto como o próprio leitor. Acertei na parte do algo-mais-leve, mas também tem muita coisa de absurdamente pesada nessa narrativa.
A história gira em torno de Charlie, um adolescente cheio de inseguranças e questionamentos. Ele está indo para o ensino médio, seu único amigo se matou e ele parece não ser muito bom com amizades - fala pouco e pensa muito. O fato é que Charlie acaba cruzando com Patrick e Sam, dois veteranos, e a relação dos três vai se desdobrando e construindo coisas novas pra Charlie.
Até aí a história é clichê, mas de repente o autor nos surpreende tocando em tabus e assuntos tensos de uma forma leve e sutil sem deixar de ser dolorido quando deve ser. Assuntos como o suicídio antes mencionado, homossexualidade, preconceito, drogas, aborto, violência contra mulher e pedofilia estão presentes no livro. E essas coisas não estão simplesmente soltas na narrativa, mas são construídas de uma forma a soar um pouco como “lição”,  não no sentido moralizante, mas talvez no sentido de abrir os olhos do leitor e fazer com que ele mesmo deseje ser uma pessoa melhor - como quis a leitora que cito no começo do texto. Ou talvez ainda no sentido de conseguir deixar as coisas ruins pra trás e saber lidar com isso. Esse ponto me fez pensar que esse é realmente um ótimo livro para ser discutido em sala de aula com alunos da mesma faixa etária dos personagens - final do ensino fundamental e começo do ensino médio. Quem sabe um dia...
Achei realmente bom porque já tive 15 anos e também não me sentia parte de nada. Porque tenho 23 e às vezes ainda me sinto da mesma forma. Porque esse livro diz muito mais do que está escrito. Porque me fez lembrar de coisas, de livros e de músicas. E provavelmente também vai te fazer lembrar de coisas, de livros e de músicas. E de como você costumava ser quando não se sentia parte de nada. Ou de como pertencer a algo pode ser bom e triste ao mesmo tempo. Ou de como existem Patrick’s e Sam’s na vida de todo mundo. Ou de como é quando eu me sinto infinita.

p. 221
Caso alguma coisa tenha te escapado desse texto é porque você ainda não leu o livro e ainda não sabe do que eu estou falando. E eu quero que você saiba do que eu estou falando. 
Se ainda não leu o livro, leia. O filme também é muito bom e bem fiel ao livro (o diretor do filme é o autor do livro, ou seja).

Sem saber onde pôr as mãos

Acabei de ler A primeira pessoa, da elogiadíssima Ali Smith. O fato de ser quase 5 horas da tarde de um domingo que insiste em pingar é a explicação por não escrever muita coisa sobre esse livro. 
Por muita expectativa ou momento errado, não gostei. Apesar disso, o último conto, que dá título ao livro, foi o único que conseguiu realmente me causar algo - ou dizer o que eu preciso/quero ouvir agora. Enfim. Tá aqui:

"Você não é a primeira pessoa com quem eu já fui tantas vezes pra cama no mesmo dia,  eu digo.
Espero que não, você diz.
Você não é a primeira pessoa que me renovou, eu digo.
E não serei a última, você diz.
Você não é a primeira pessoa que pensou que podia ser meu salvador ou minha salvadora, eu digo.
Eu é que nunca ia ter esse tipo de presunção, você diz.
Você não é a primeira pessoa que espirrou seja lá que suco de amor que você espirrou nos meus olhos pra eu ver as coisas de um jeito tão diferente, eu digo.
Ãh? você diz.
Aí você faz a cara inocente que faz quando está fingindo que não entende.
Você não é a primeira pessoa com quem e já tive conversas boas que nem essa, eu digo.
Eu sei, você diz. Já passei por tudo isso, e tal. Você se sente no auge da experiência.
Valeu mesmo, eu digo. E você não vai ser a primeira pessoa que me deixou por causa de outra pessoa ou de outra coisa.
Bom, mas se tudo der certo isso ainda vai demorar um tanto, você diz.
E você não é a primeira pessoa que, que, ãh, que -, eu digo.
Que te deixa sem saber onde pôr as mãos? você diz. Bom. Você não é a primeira pessoa que já sofreu por amor. Você não é a primeira pessoa que bateu na minha porta. Você não é a primeira pessoa por quem eu arrisquei um braço. Você não é a primeira pessoa que eu tentei impressionar com minha brilhante performance de quem finge que não se impressiona com nada. Você não é a primeira pessoa que eu faço rir. Você não é a primeira pessoa e ponto final. Mas você é a única pessoa agora. Eu sou a única pessoa agora. Nós somos as únicas pessoas agora. Isso basta, né?" 
(p. 143-144)

Sobre a cama vazia e o andar dos dias

Amores não se esforçam. ( Fernanda Young em O pau, p. 30)

Acostumei tanto com a sua falta que ando aceitando como natural o vazio na cama e no coração. O lençol continua no lugar, o travesseiro repousa tranquilo sob o rosto. O andar dos dias é calmo. Quando você não está aqui, tenho toda a liberdade em escolher qual filme quero assistir - o que é ótimo, já que você tem uma mania insuportável de querer ditar quais filmes iremos ver juntos. Você escolhe sempre aqueles a que já assistiu três vezes, mas quer muito que eu também assista - mesmo que eu não o queira. Além disso, você fica velando minha atenção pra que eu não tente nem por um minuto cair naquele sono que costuma chegar loucamente quando assisto a um filme com você.  E é engraçado, porque eu nunca durmo quando assisto a um filme sozinha. Com você, os primeiros 5 minutos são um convite ao recostar da minha cabeça sobre seus ombros. Nos próximos 10 minutos eu já dormi.
Ando ficando bastante acordada. Leio livros dos quais pouco tenho gostado, passeio com o cachorro, assisto programas de televisão dos quais você não gosta.
Como eu dizia, está tudo bem comigo e com o andar dos dias. Continuo sem concentração e teimando em ignorar as coisas que tenho que fazer. Ainda não aprendi a controlar os gastos, ando mais viciada do que nunca em caderninhos de anotação, coloco o despertador para tocar cedo mesmo sabendo que vou desligá-lo assim que começar a apitar. Pensei agora que é isso que tenho feito nos últimos anos: desligando o despertador mesmo sabendo que tenho que acordar. Ou que devo acordar, não importa. Minha garganta ainda dói, a família vai mal, como sempre. No criado-mudo ainda tem uma foto nossa, sim. 
Você me procura, eu recuo. Eu te procuro, você recua.
A quantas conversas francas resiste um relacionamento? Não era essa a pergunta?
A quantas qualquer-coisa resiste um relacionamento?
Então repito: está tudo bem comigo, com a falta, com o meu desejo de ir embora, com a vontade no meio das pernas, com o medo de não ser o que eu quero ser, com o arrepio na boca do estômago, com a saudade que ainda existe apesar de tanto tempo. Tempo, esse inimigo de cordas e ponteiros. 
Em que momento as coisas se perderam?
Mas ainda existe Nina Simone no vinil, o cigarro com gosto mentolado que você detesta mas compra porque eu gosto, o sexo que vem pra atestar que ainda há algo vivo no meio de tanta coisa que cala. Há ainda algo vivo no meio de tanta coisa que cala? Não importa. Está tudo bem, digo. E quase acredito. 

O amor acaba?


Uma das crônicas mais bonitas da vida: 

O amor acaba - Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.



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