05:26

O sono me erra. Meu cachorro late à noite toda, minha mãe adormece em uma poltrona fria, minha avó resmunga em um leito de hospital. Meu amor está longe (no entanto perto).
Queria poder fechar os olhos e não ver mais nada. Tenho me cansado de latidos. O filme na tv é apenas pretexto para iluminar a madrugada escura e o nó na garganta é reflexo da solidão que invade tarde da noite.
Estou fascinada com a forma com que a vida consegue ser feia e bela ao mesmo tempo.
Me sinto Clarice. Quero uma Olga. Preciso. Um cigarro, um fogo no quarto, um cachorro chamado Ulisses.
Preciso de mar, de água, de uma voz que saia e de um amor que dure pra sempre.
A noite é longa. 05:30. As palavras raspam a parede da minha garganta e tudo o que consigo sentir é uma vontade imensa de gritar e vomitar tudo o que não sinto – ou que sinto tanto – em palavras que extrapolam o dicionário.
Lembro de pessoas. O homem com o cigarro na mão direita, a senhora maltratada pela neta no hospital, a mulher chorando ao enxergar a morte de perto – deitada ao lado. Morro de medo da loucura. Me apego à realidade inventada para fugir dela.
Minha realidade tem gosto de mel.
Eu odeio mel - apesar de ser doce.
[Então que seja doce, ele disse]
Mas é que tudo me dói de um jeito muito próprio nessa madrugada em que a primavera mais parece inverno cortante. Pareço uma criança boba dentro do pijama rosa e da japona azul. Uma criança boba e com medo de escuro. Uma criança que eu sempre acabo sendo.
Queria um cigarro, a velha companhia na sacada, um disco na vitrola que não tenho e uma máquina de escrever no canto do sótão. Uma máquina que não tenho, em um sótão que não existe. É que sou toda assim: não me caibo em mim mesma. Vivo em sótãos e porões que invento, escrevo amores que não sinto e sou pouca palavra quando sinto tanto.
Só escrevo quando a agonia arde até os ossos. Só amo quando o querer alcança o coração.
Não sei mais o que quero dizer.
Água-viva.
Criança, burra, insone.
Tudo o que quero realmente é poder dormir.
05:37.

(Agora eu sei)

Eu não sei brincar de amor
                                                               
Hoje, enquanto tomava banho, me peguei pensando no fato de que a vida inteira eu só me envolvi com pessoas erradas. Mas daí me veio uma outra coisa em mente: Eu sou a mais errada de todas elas. Eu sou. Eu não sei fazer carinho sem pedir carinho em troca. Eu não sei brincar de amor. 

(algum dia, de algum mês, de 2007) 



Escuta, ainda não acabou

Escuta aqui, presta atenção só mais uma vez. Só por um segundo. Lembra? Eu te disse aquilo aquela noite mas de repente aquilo não faz mais sentido do lado de dentro. Você me apertava com força e eu tive medo dos seus olhos. Eu sabia que você não iria me bater ou acordar o prédio todo com os gritos de uma briga, mas eu tive um medo tão grande! Um medo do olhar. O amor acaba quando você não consegue mais se ver dentro do olhar do outro. E eu me via ainda, eu estava lá, quieta e assustada. E tive medo por isso. Medo dos seus olhos tão verdes e tão profundos, esses olhos que eu sempre me perco quando quero me encontrar nas estradas em que você insiste em desenhar com seus dedos queimados de cigarro. Você não lembra. O relógio rodou por aí. Por aqui o tempo ainda congela feito um relógio de cordas quebradas e eu já não posso mais ouvir o badalar do teu nome. Enxergo teu corpo no corpo de todos os cem homens de todos os cem corredores. Eu quero tanto te dizer, meu amor.
Vê que ainda te chamo de meu amor. Não posso mais.
Por favor, só me ouça pela última vez. Não quero tua boca, muito menos sentir sem corpo rijo contra minhas coxas já quentes. Não quero mais, você entendeu?
Quero tanto.
Não me segure nunca mais pelo braço daquele jeito. Eu não quero sair dos seus olhos, eu não quero me perder dos teus pêlos.
Não deixe, simplesmente não deixe.
Arranque o cigarro das mãos, cale a boca do Dylan, deixe o café esfriando, mas venha.
Eu te espero tanto, meu amor.
Te espero fria, burra. Me visto da mulher mais burra do mundo pra você. É isso que você quer? Um foda bem dada, uma carta de amor? Eu dou, eu faço. Eu gemo se você preferir, apesar de eu não gostar. Imito Vinicius, fodo com outra, me toco pra você ver.
Você me ouve?
O amor é a burrice que o coração inventa quando sente que está preparado pra sofrer, você me disse uma vez. E quem sofre agora, meu amor?
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A propósito, você parou de fumar? Sim, minha mãe vai bem, meu irmão também. Perguntou de você ontem. Eu te amo. Prestatenção nisso: Eu te amo. Não desvia o olhar. Não desvia a porra do olhar.
Me olha. O que você quer que eu faça? Eu grito. É isso que você quer que eu faça? Conte pra todo mundo que eu sou mais uma dessas garotinhas burras que se apaixonam, se casam e depois passam a vida toda apanhando na cara de marido filho-de-uma-puta e. Gostam. Eu não quero ser essa mulher. Eu sei, eu sei que você nunca me bateu. Mas é que. É como se fosse, entende? Você me machucou aqui. Tá vendo? Bem aqui.
Apaga essa merda de cigarro. Eu não tenho nenhum cd do Dylan aqui.
Me olha.
Me toca.
Me ame, meu amor.
Espera, não vai embora ainda. Eu vou passar o café. Tem capuccino também. Comprei aquele que você gosta. Espera mais um pouco. É que eu não consigo dizer.
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 Lembra aquele dia em que eu disse que eu não te amava mais?
Eu menti. 

Das palavras cruas

(Para se ler ao som do silêncio)

Isso era pra ser um conto. Eu, egocêntrica que sou, personagem principal. Acontece que não sei brincar de me ficcionar. Sou pura autobiografia. 
Tive tanta saudade da palavra. Assim: de repente. Uma saudade do verso, da prosa, do cansaço que bate no corpo depois de terminar uma história cheia de quereres.

Tenho vontade de me reescrever.
Do alto dos meus 20 anos, de repente tive medo de me perder de mim. Me errar por dentro como se erra o desfecho de um conto (os finais sempre nascem por si só). Eu me nasço. Mas tenho morrido tanto.
Quero escrever, porra.
E a vida não deixa. O tempo gira rápido, dia, tarde, noite. Acabou. Cama, sono. Um livro caído no peito e nenhum verso no caderno-rosa-ainda-vazio. 
Eu quero escrever e sinto uma angústia gigante por não conseguir. Por não ter esse tempo de respiro - de suspiro. Minha angústia é palavra enganchada do lado de dentro, presa nas amígdalas, perdida entre os cabelos. 
Escrever é uma grande maldição. Às vezes me pego pensando que o fato de eu ser assim - tão desassossegada, tão presa dentro de uma música do Radiohead - tem a palavra como principal culpada. A palavra lida, que percorre todos os órgãos e cai de leve no coração em forma de pulsão. Pulsão de escrita.
Eu quero escrever. 
Escrever que tenho pena dos casais que dividem mesas de restaurantes sem trocar nenhuma palavra, dos homens que nunca sentirão o gosto doce do amor-sexo bem feito...
Eu quero escrever sobre um monte de coisas a toda hora. Mas só consigo ficar num mesmo e maldito assunto. Meu eu em você. Ou como todos os romances do mundo ficam sem graça e todas as palavras do mundo não fazem sentido quando tudo o que tenho é seu corpo colado ao meu e tua palavra crua colada à minha desordem. O resto se resume apenas em livros na estante e roupas jogadas em volta da cama. 
Não quero saber da palavra que não seja sentimento-carne. 

Seu beijo, seu texto, seu queixo, seu pêlo, sua coxa

(Para se ler ao som de Caetano Veloso – Deusa Urbana)

Não consigo mais escrever. E de repente começou a tocar Caetano. Já gritamos tanto com Caetano cantando ao fundo. E de repente comecei a pensar em nós. Somos tão próximos o tempo todo que eu sempre preciso da distância do seu corpo pra conseguir perceber as coisas com mais clareza. Não que eu não as perceba quando estamos colados, mas é que o mundo todo parece conspirar de um jeito bonito quando estamos perto. Nem penso. Não quero saber, simplesmente. Foda-se o meu curso de merda, foda-se o meu vazio de não conseguir tempo pra ler os livros que quero ler. Que se foda tudo bem grande enquanto você me fode em noites que correm com a lua nos invejando pela janela. Virei uma acomodada. E nunca me pareceu tão bonito a acomodação que o amor me causa. Colo de mãe, toalha depois de sair do mar.
Morreria ouvindo Caetano agora.
E Deus sabe o quanto queria te chamar pra dançar no meio da sua casa minúscula agora. E você me diria que não sabe dançar e eu te diria que eu também não sei e dançaríamos juntos e riríamos juntos do nosso mal jeito pro mundo, do nosso modo de esbarrar em cantos e de acordar falando sem parar no meio da noite.
Eu quase choro falando de você e sou tão boba quanto qualquer menininha de 14 anos que acha que acabou de descobrir o que é o amor. É que não consigo parar de pensar. Por mais que eu tente, eu não consigo.
Umbigo que sou, também não paro de pensar no modo como você precisa ir pra longe pra eu conseguir dizer o que eu sempre quero dizer mas que acabo não dizendo porque me enrolar no seu corpo já sem roupa e ficar cantando as músicas dos encartes de CD da sua casa às 2 horas da manhã são muito mais interessantes que a minha sede de literatura.
Eu quero gritar pro mundo bem em um daqueles dias em que eu acordo surtada, falando quinhentos palavrões por segundo, que porracaralhoimenso como eu te amo, meu menino.
E paro por aqui, sem a necessidade de trabalhar em um bom final – eu que sou tão viciada em bons finais – porque não quero te fazer minha literatura. Quero me fazer literatura e me entregar crua, muda e tua – beijo, texto, queixo, pêlo, coxa. 

Cadela abandonada ou como abrir as cortinas da retina


Tenho alma de cadela abandonada. Não, não dessa forma. Ao contrário do que você pode imaginar, não há nenhuma conotação sexual nessa minha afirmação. Repito novamente para tentar deixar as palavras mais claras: tenho alma de cadela abandonada.
Não posso ver cachorro na rua. Ontem mesmo estava saindo da garagem do meu prédio quando olhei pro meio fio e vi um cachorro com um olhar tão triste que não tive alternativa a não ser parar o carro e ficar conversando com ele com uma baixeza de mentalidade que o humano só consegue alcançar quando se dirige a bebês ou a cachorros. Eu era um ser humano com a cabeça para fora do vidro do carro e com um cachorro por trás do olhar. Por trás do olhar é o mais fundo que se pode chegar antes de atingir o coração.
Pouca gente consegue ultrapassar o olhar. Pede-se delicadeza e presença de espírito para saber o momento exato em que se afasta as cortinas da retina. O cachorro estava lá, deitado por trás dos meus olhos, colado à minha íris.
O fato é que perdi a noção do tempo. Fiquei lá com o cachorro a me olhar pelos meus próprios olhos, falando, é claro, com a voz débil mental típica da situação. A voz débil mental é importantíssima, é como a trilha sonora que toca enquanto as cortinas da retina são abertas.
Eu adoro cachorros. E gatos também. Os gatos têm o meu respeito porque são seres digníssimos. Os egípcios tinham razão, gatos são, com toda certeza do mundo, superiores a nós. E se engana quem diz que são bichos egoístas. Muito pelo contrário, são eles a própria reencarnação do altruísmo: quando os gatos sentem que estão para morrer, eles vão pra longe do dono. Geralmente o pensamento pára por aí. Mas nada me tira da cabeça o motivo: eles vão pra longe do dono porque não querem causar sofrimento alheio. Morrem sozinhos, agonizando depois de atropelamentos e partos mal sucedidos.
Cachorros não. Quando eles estão morrendo, chegam mais pra perto, aninham-se no colo, pedem carinho que nunca gostaram antes. Até o mais frio dos poodles neurastênicos, o mais violento dos pitt bulls, torna-se um carente profissional nessas horas mais difíceis. Cachorros são seres egoístas. Lindamente egoístas. Precisam do amor concreto. Não saberiam fazer poesia se pudessem.
Pois estava dizendo que não posso ver cachorro na rua. Não posso. E não posso ver gato também. Mas gato corre, se esconde no bueiro, alimenta seus filhotes. Cachorro é resignado. Fica deitado com folhas grudadas nos pêlos, aceitando a condição e não saindo do lugar em que foi deixado, que é pro dono poder achar se resolver tê-lo de volta. Cachorros sabem alimentar o doce das ilusões.
Tenho alma de cadela abandonada. Pego todos que vejo pela frente e, se não puder pegar, espalho fotos, grito pro mundo, abro as cortinas da retina das outras pessoas com a mão leve da palavra. Tento salvar os cachorros da calçada, da ração cheia de formigas, da comida rejeitada, da água quente no final da tarde. Tento salvá-los do mundo, da realidade crua, das pálpebras fechadas. E faço tudo isso por um único motivo, porque os salvando eu me salvo também. Porque não tenho só alma, tenho coração de cadela abandonada.

Tão-perto


-Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
-Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
-Vou te escrever carta e não te mandar.
-Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
-Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
-Vou ver Saturno e me lembrar de você.
-Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
-O tempo não existe.
-O tempo existe, sim, e devora.
-Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
-Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
-E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.

(Caio Fernando Abreu - O dia em que júpiter encontro saturno, em Morangos Mofados)

So blue

Não consigo entender o que realmente causa a solidão. Não digo a solidão por si só, mas a existência dela: a hora pura em que ela surge.
Será a presença bruta de uma única caneca suja sobre a pia? O café frio na garrafa térmica, os lençóis com um só cheiro, os chinelos de quarto nunca compartilhados, a tampa da patente erguida e nunca abaixada por outras mãos? É que não existem outras mãos. Não existem.
No meio dessas buzinas que não param, no meio dessa bagunça de vozes sedentas por qualquer coisa, um olhar, quem sabe, um olhar no meio de tantos carros. Um olhar que ao ouvir Janis soar no som do velho fusca abre lentamente o vidro e apenas vê, como que querendo dizer ‘eu entendo’ ou ‘ também estou aqui’, i know how you feel, little girl blue, little girl blue, little girl blue.
Nada faz sentido. O vidro não é aberto. O fusca não existe. Janis Joplin não canta.
Preciso tanto. De alguma coisa. De alguém.
Um verso.
Um soneto.
Outra caneca de café suja em cima da pia.
Porque estou sozinho e já é noite. E quando é noite e eu estou sozinho, minha mente se enche de fantasmas terríveis que eu não consigo afastar. E eu procuro naquela velha agenda algum número, algum amigo, algum velho amor. Não encontro nada.
No entanto, encontro páginas em branco. Cartas não enviadas, frutos de amores não correspondidos. Nessa merda de vida ninguém consegue se dar por inteiro, pensei. Ficam por aí, se esfregando em noites longas, roçando a pele do rosto, tocando ligeiramente a coxa alheia, chupando-se em banheiros sujos. Metade. Todos malditas metades.
Eu, inclusive.
Preciso tanto.
De qualquer coisa.
Um chá quente.
Um cigarro.
Algo nas mãos.
Segura na minha mão. Sussurra no meu ouvido aquela história de outrora. Toca meu coração. I know you feel. Solidão também se divide. Traga sua maldita caneca, faça um café, coloque-a já suja em cima da pia e venha se deitar em cima do meu corpo, já que a alma escorreu em alguém que eu preciso tanto e que nunca esteve aqui.

O amor... essa palavra

Eu nunca entendi meu coração. Desde pequena é assim, essa briga, esse jogo, essa coisa...
Isso me fez escrever lá pelos 15 anos uma bossa-nova bem melosa e sem graça em que eu dizia na estrofe principal: eu não sei usar amor. É, eu disse isso. E quer saber? Às vezes me pego pensando que eu não sei usar mesmo. Assim: não me cabe. Uma coisa estranha, de achar que o amor é feito um livro que se lê e não se vive. Nunca entendi muito bem.
Entendo muito pouco de amor, na verdade. Talvez isso explique o meu coração desencantado de adolescente. Meu pai não soube usar amor – o amor era coisa-grande pra ele, tão grande que acabou de repente. Minha mãe não soube usar amor – o amor era coisa média e depois ficou tão grande que não acaba nunca mais. Meu avô não soube usar amor – lá pelos meados dos anos 40, morando em uma cidade que só tinha uma única rua, saía com outras mulheres enquanto a minha avó costurava em casa. Minha avó não soube usar amor – esqueceu tudinho e quando é perguntada sobre qualquer coisa acerca desse sentimentozinho ela diz: “o amor?! Essa palavra...” e não fala mais nada. Pra piorar tudo, nem meu cachorro sabe usar amor – ele só parece amar a gente quando está doente, ou algo assim, quando ele está bem nem nos olha na cara.
É engraçado essa história de amor... pensar que nessa hora existe um monte de gente morrendo de amores em vários cantos do mundo. Casais apaixonados em Paris, pessoas transando em um motel barato, uma mulher de coração partido comendo chocolates no quarto e jurando pra si mesma que sim, ela goza melhor sozinha, um homem triste e solitário se derramando dentro de uma mulher a quem ele nunca dará seu coração.
Ninguém sabe usar amor. O amor não é usável- pensei. Talvez o amor, essa palavra, seja exatamente isso. O não-saber. Sentimento-grito. Objeto-pulsante. Só isso: O amor, essa palavra...

Poema sem-nome

Viajo em cores e lençóis de cama
Não me sei sozinha
Deitada sobre o tapete da sala
Os livros apoiados
Na estante
Os discos
Canecas de café
Envelopes vazios
Cartas não enviadas

No meio de tanta coisa
Meu coração com teu nome.

Me liga quando chegar em casa?


(Para se ler ao som de Call me on your way back home – Ryan Adams)

Eu o amei desde o primeiro minuto do primeiro segundo. Apenas soube. Sem mais explicações ou literatura.
Nos beijamos sem nos conhecer, mas depois que o beijo terminou, já éramos velhos conhecidos.
O tempo do mundo sempre foi diferente do nosso tempo. Da primeira vez que nos tocamos tudo era de uma vergonha tão grande que dormi com as costas encostadas no peito dele. Pela noite toda recebi beijo por de trás do pescoço.
Quando nos amamos pela primeira vez já era quase dia. A cama estava desarrumada, meu cabelo cheirava a cigarro e seus olhos estavam embriagados. Em compensação, poucas vezes senti nossos corações batendo tão forte como nesse dia de meia-calça jogada pelo chão e palavras inteiras sussurradas do lado de dentro – eu ainda não tinha voz para dar nome às minhas emoções.
Eu fui embora logo depois. Transbordando pela primeira vez de um amor líquido e quente, um amor de carne e de nome. Na porta, com os cabelos bagunçados, os olhos baixos e tímidos, você me disse depois do abraço, me liga quando chegar em casa, sim, eu disse, te ligo.
Liguei e não falamos nada. Só um cheguei bem, que bom, dorme bem, você também. Demoramos um pouco pra desligar. Alguns segundos. Não faziam a mínima diferença pra qualquer pessoa do mundo, de outro tempo, de outro corpo, de outro líquido, de outro nome. No silêncio descobri que me liga quando chegar em casa era o seu jeito de dizer eu te amo. O meu jeito de responder eu não sei qual é. E é por isso que escrevo. Pra tentar te dizer que sim, eu também, eu muito - eu te amo.

Ensaio sobre o toque

[Um texto que era pra ser parte de um curta que acabou não sendo. Escrito com a "ajuda" de Caio e Cortázar]

Cadê você que não aqui? Onde estaremos nós no meio dessas linhas forçadas e desse gosto de cigarro na boca? O telefone não toca. Apesar de parecer ouvi-lo ressoar em algum canto da casa. Não deve ser você.
Não ouço. Mal consigo segurar a caneta que a agonia me bota na mão.
Respiro confundida, querendo encontrar a minha boca na tua boca, mordendo os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio.
Fingir que está tudo bem, os olhos borrados, o canto da boca levemente mordido na tentativa de matar a vontade que grita, que arde. Fingir que está tudo bem enquanto o telefone não toca, a vida não gira. Fingir que está tudo bem, o coração a tilintar feito pequenos cristaizinhos pulando no chão.
Odeio amar, não é engraçado? Amanhã tento de novo. Amar só é bom se doer. Desculpe tanta sede, tanta insatisfação. Amanhã, amanhã, recomeço. Te espero. Te Beijo.

O corpo da alma ou por dentro da carne

Me peguei pensando em nossos corpos. Sim, corpos. Suados, nus, a dança bonita de pernas e braços, os pêlos a raspar nas coxas, barriga, rosto.
Te quero tanto. É simples o que digo.
Quando você está dentro de mim, sinto como se peixes errassem nas minhas veias. E nem todos os romances do mundo conseguiriam explicar o meu calor no meio das pernas.
Como explicar o modo com que me penetras em corpo e me atinges com lenta delicadeza o coração? Ao mesmo tempo. Tudo-junto. Música melodiosa: eu-mais-você.
Não consigo achar um jeito melhor de falar de amor a não ser o fazendo tão bem.
Ter você grudado a mim, interligado a mim por um órgão que pulsa, que jorra, que pede e que depois se derrama e adormece ainda dentro de mim é o mais perto que eu já consegui chegar do amor.
O corpo da alma é menos carne e mais coração cada vez mais.

[foto de Cartier Bresson]

(o texto era pra ser maior, mas de repente eu só queria dizer que.)

O amor não morreu

O amor não morreu - apesar de morrer todos os dias. Mas hoje à tarde, perdido por entre livros e verbos em francês, o amor apareceu no arrepiar dos pêlos e nos olhos de alguém que talvez tenha o perdido em alguma mesa de bar.

- Eu vou me casar. - Disse a menina morena ensaiando uma voz meio-séria meio-extasiada.
- Mas é já-já, não é? Então corra senão não dá tempo. - A professora reforçou.
- Dá sim. Eu e ele guardamos dinheiro pra isso desde os três meses de namoro, porque já sabíamos que iríamos ficar pra sempre juntos.

(silêncio)

Isso mesmo: um silêncio doce e profundo.
Dos olhos da professora, que vira a mexe solta algumas frases cheias de um grito típico de quem não sente a mínima necessidade de se dividir em alguém, saíram algumas pequenas lágrimas que não chegaram a cair no rosto, mas encheram o olhar de uma esperança bonita, uma não-morte desse amor que insistem em matar todo dia.
O amor - essa palavra. Troço complicado, que bate e afaga ao mesmo tempo. Eu digo que depois dessa tarde o sinto melhor aqui ao lado, repousado leve sobre o canto esquerdo do coração. E vou dormir acreditando que a lágrima que quase caiu dos olhos da professora foi o sinal de que em algum canto dela ele ainda pulsa e não morre nunca por nunca deixar de viver em lugares que às vezes a gente ainda desconhece.

Visceral


Eu preciso de você.
É simples o que digo:
-Preciso de você.
De um jeito tão certo e bonito,
Que a minha boca passa ser a sua boca,
E os meus olhos o reflexo dos seus.
E é tão forte
que quase posso sentir o seu coração
batendo por trás das minhas costelas.

Uma história de solidão

Ah, o amor. Troço de loucos. Não sei se desacredito ou saio por aí gritando. O fato é que vi. Vi da janela. Sim, pode me chamar de voyeur ou do que quiser chamar. Mas não deu pra acender um cigarro e simplesmente ir ouvir billie Holiday ou qualquer jazz que o valha.
Eles estavam nus. Um de frente ao outro. Nus! E dançavam!
E eu, da janela da frente, com um cigarro vagabundo na mão e o pau querendo ficar duro só conseguia pensar: solidão dói pra porra.
Mas não, eu não vou ficar falando de mim.
Vamos voltar pra eles. Os dois seres branquelos e nus. Na verdade não dava pra ver claramente se eles eram tão branquelos assim. Mas a luz da lua deixa tudo tão branco e tão bonito...
Eles estavam nus e dançavam. Dançavam nus uma espécie de valsa desajeitada: os corpos juntos, o pênis já enrijecido entre as pernas dela, as bocas se encostando lentamente, os cílios pesando sobre os olhos, o sorriso levemente aberto, os cabelos caindo sobre os ombros, ou será que eu já estou inventando tudo? Não sei bem. Talvez seja o vinho, o cigarro barato, a vodka de ontem. Se bem que aquilo não era vodka, era álcool puríssimo. Talvez seja só a solidão-parede-vazia. A solidão-nenhum-porta-retrato. A solidão crua e sem métrica.
Eles dançavam. Mas alguma coisa aconteceu antes, se bem me lembro. E não me lembro bem, que fique claro. Quando eles ainda estavam de roupa. Sim, ainda de roupa eles começaram a fazer uma espécie de jogo. Um jogo belíssimo daqui de onde eu olhava.
Primeiro ele desabotoou a blusa dela.
Depois ela arrancou a dele.
Ele abriu a calça dela e tirou-a também, abaixando-se juntamente. Depois tirou as duas meias.
Ela abaixou também, os dois riram de algo que, daqui de onde eu olhava, não consegui ver. Subiram novamente. Feito dois atores de um filme francês do Honoré, debochavam de mim sem me saber ali, atravessando as cenas, rindo onde não se deve, tocando previamente o sexo um do outro – mal sabiam eles que é desse tipo de filme que eu mais gosto.
Subiram novamente. De pé. Um de frente ao outro. Ela tirou a calça dele. Já nus, se abraçaram.
Eu podia sentir aquele abraço. Os corpos brancos o sexo duro o sexo úmido o coração gritando a respiração na nuca a textura do cabelo dele o arrepiar dos pêlos dela. Fechei os olhos por um instante, colocando meus dois braços em torno de mim mesmo, numa tentativa falha de também me sentir abraçado, de matar a solidão, de espalhar porta-retratos pela casa, de preencher o branco das paredes. Quando os abri, eles já estavam dançando. Dançando do jeito que eu contei a vocês há pouco. E dançavam. E riam. E davam peso pra levíssima vivência dos dois. E se materializavam em palavra e em poesia de um jeito que todos esses livros embaralhados na minha estante nunca conseguiram. E dançavam e rodavam e se amavam. E eu sabia, daqui da janela, eu sabia que eles sabiam de tudo isso, que tinham a plena consciência do quão raro e bonito era aquele momento e do quão plenos eles se sentiam apenas por estarem nus e dançando enquanto eu fumo o antepenúltimo cigarro do meu segundo maço de hoje.
Um pouco depois ela o abraçou com as pernas. Sabe o que eu digo? Você sabe, não é? Assim: pulando e puf: eis o abraço com pernas. E daí caíram juntos no que imagino que seria um colchão no chão, já que a minha observação terminou por aí.
No entanto, a solidão por aqui ainda é grande. Quiçá maior ainda. Nem mil punhetas tirariam o peso dos meus olhos, do meu coração. E tudo o que quero agora é o último cigarro do segundo maço e uma história pra viver, não pra contar.


Pedaços rasgados
De uma vida a ser escrita.
Rasgo papéis,
Invento fotografias,
Pinto guardanapos.
Tudo pra preencher
O buraco no meio do peito
De querer enlaçar o mundo
Tendo perdido o laço.

Sendo Clarice

Perguntas e respostas para um caderno escolar

- Qual o sentimento mais rápido?
- O sentimento mais rápido, que chega a ser apenas um fulgor, é o instante em que um homem e uma mulher sentem um no outro a promessa de um grande amor.
(A descoberta do mundo)

Poema sobre a entrega

(foto de Nan Goldin)


De tudo o que me deste
Beijo,
Cama
& cansaço
O que mais está em mim
É seu coração
Que
Sem perceber
Bate no mesmo compasso que o meu.

[o primeiro escrito de 2010 e tão leve como o suspiro que eu ainda não acabei de dar - tão grande amor]

Aritmética


Toda vez que eu termino de ler um livro, tenho um ritual: vou folheando página por página e encontrando marquinhas feitas à lápis que significam nada mais nada menos do que partes que eu achei interessantes. Só depois de transcrever todos esses trechos para um lugar onde eu guardo coisas do mesmo gênero desde que eu tenho uns 12 anos é que vou até a estante, escolho uma prateleira e coloco o livro recém lido no seu lugar. A questão é que não fiz isso com Aritmética, livro da Fernanda Young, escritora que apesar de meio mundo falar mal, eu adoro e nunca me irritou - trocadilho seja feito - em nenhum dos livros que eu li até hoje. Pois bem, hoje de manhã resolvi pegar o Aritmética, livro que enquanto eu estava lendo me fez surtar e até pensar em pesquisar algo nele para o TCC, e transcrever os tais trechos marcados. Li faz uns 2 meses, e eu gostei tanto de reler essas partes que me deu vontade de colocar aqui:

E a língua portuguesa não agüenta mais a chateação dos meus versos repetidos, repetidos por ela, que tão docemente recebeu minha língua em sua boca, dando-me um gosto que um milhão de palavras não poderiam traduzir. Porque não há verbo, ou sinal, ou lirismo, que consiga expressar o estranho que foi, o desconforto que foi, saber: esse beijo é o meu beijo. [p. 11]

A vida humana é basicamente isso, não é? Ferir e perdoar. [p. 301]

Tem vontade de sacudir aquele corpo e dizer “ei, devolve. Devolve o amor que tinha aqui. Que preenchia essas lacunas no meu peito, deixando tudo menos frouxo em mim. Devolve a liga, o ponto que faz do bolo um bolo, o nó da lã do tricô. Me salva."
[p. 271]

As mulheres são tristes quando contam as suas coisas. [p. 249]

Constrage-me existir nesse personagem Chico Buarque, dolorida, bonita sendo assim, meio tonta, meio insistente, até meio chata. Nunca precisei aborrecer ninguém antes, então atuo por instinto, cansando-me facilmente. E que fique claro que não é por estar você dessa forma, tão esquivo, que o desejo tanto. Desejo-o porque desejo. Estúpida, latina. Bethânia. Ainda creio que você, quando eu menos esperar, possa me chegar com um verso em atitude. [p. 75]

Algo como o valor de se viver grandes amores, apesar de, em se estar vivendo, ficarmos condenados, também, a grandes desilusões. Aritmética, Fernanda Young
[p. 19]


E tem muitas outras... vale a pena ler o livro todo.

Da carne das palavras


Assim que seus olhos se deitaram sobre os meus as palavras ganharam um sentido diferente.
Não mais que de repente, eu soube de todas as nossas vidas, nossas fugas, nossos esbarrões, assim que nos perdemos pela primeira vez em lábios e línguas com um fundo musical que eu não lembro agora, mas estou quase certa de que se pudéssemos ser diretores do nosso próprio roteiro, mudaríamos sem dizer uma palavra. Apenas um sorriso de canto de boca. Como que para atestar que sim: a música que você escolheria seria – e não tenho dúvida – a mesma música que eu escolheria.
Eu soube que essas palavras que sempre saíram tanto da minha boca, palavras de poetas que eu sempre li, de escritores que as vomitam em mesas de bar, em prostíbulos cheios de mulheres que nada se parecem com a pessoa amada, em páginas amareladas de livros esquecidos em tantas estantes de casas onde essas palavras não fazem sentido algum, eu soube que todas elas mudariam de sentido. Signo, significado, significante – o velho professor repete pausadamente em minha orelha. Quero mais é que todos desçam pelo ralo junto com qualquer limitação. O sentido é outro. É sentido-sentimento. Eu sabia tanto das palavras, tinha decorado sonetos de Vinicius, trechos dos contos da Clarice, finais impactantes de romances clichês. Todos pelo ralo.
Me resta só o cru. O cru de todas essas palavras. O cru do seu nome. E é tudo tão doce. Tão-tão-tão doce. A dor de não acordar com você é doce pelo simples fato de te saber e te sentir e te respirar no meu corpo mesmo quando distante.
Me resta o cru desse verbo que escrevo na sua pele com a minha saliva. Esse verbo que mastigamos juntos enquanto te recebo dentro de mim. Esse verbo que me faz ser sua e te faz ser meu com as letrinhas na ponta dos dedos e da língua, nadando em salivas para chegar lentamente ao centro da gente. Cor-ação.
Simples e tão concreto que ainda não inventaram palavras que conseguissem dizer. E nem é preciso. Digo a você, meu amor. Só a você. E te sei em mim pelo que você consegue ler quando o que eu escrevo se resume apenas em um suspiro perdido nos lençóis de cama.

O silêncio é grito


(O que fazer com essas palavras que sempre vêm a me saltar da boca? Engulo-as assim, len ta men te, uma a uma, a fim de deixar todas do lado de dentro, bordadas nas paredes dos órgãos, no fluxo quente que corre pelas veias, no bater lento do coração.)

O sexo do amor

Amar
do latim amare
Verbo transitivo
- Ter amor a; gostar muito de.
- Estar apaixonado.

Não, não é isso que vocês estão pensando. Mas é quase. É que ultimamente venho percebendo que o amor tem sexo. Sim, como a gente, masculinofeminino. Desconfio até que o amor tenha uma genitália. Se você, cara amiga, não fica aí sendo sensível com qualquer marmanjo que dê na telha, se você não sai por aí distribuindo doçura para o mundo ou até se você não cumprimenta a todos com um delicado tchauzinho e um sorriso também delicado, parabéns, você tem um pau. Sim, é isso mesmo. E – pasmem – das duas uma, ou você tem um pau, ou você não gosta do mesmo. Isso mesmo, sem maiores eufemismos, você é uma puta de uma sapatão. Aham. Isso mesmo. Agora você, meu caro amigo, se você não goza e vira para o lado pra dormir, se você diz eu-te-amo e não eu-te-amo-também, se você não cospe na rua, e fala obrigado-porfavor, parabéns igualmente. Você tem uma vagina, ou, repetindo pra ficar bem claro, você não gosta da mesma. Ainda há os agravantes, claro. A mulher que gosta de futebol então... ou o homem que entende de literatura. Se entender de cinema então, fo-deu.
É tão absurdo o quadro acima que eu quase sinto vontade de vomitar. Estereótipos ridículos de uma sociedade mais ridícula ainda, que cansada de rotular até a própria bunda, resolveu sair por aí rotulando sentimentos e ações.
O amor tem sexo. Existe uma espécie de cadernetinha a ser seguida. Heteros fazem isso. Bissexuais fazem isso. Homossexuais fazem isso e isso. Fodam-se. Fodam-se com essas divisões medíocres.
Amor não tem sexo. Podem parar de matutar. Não se ama pelo par de peitos mais bonito, pelo pau maior, muito menos pela penetração mais funda – de dedos ou de pênis. Não se ama pelo corpo, matéria finda. Ninguém. Ou alguém aqui ao encontrar o amor-da-sua-vida, aquela pessoa que todo mundo espera mesmo que não diga, que se encaixa em cada cm em tudo o que você sempre idealizou, vai olhar e dizer: - hum, não... infelizmente com você não vai dar, porque você tem um saco pendurado aí embaixo. Ou, nossa, você é o amor-da-minha-vida, mas que merda, você tem grandes lábios, sorry.
Não somos genitálias humanas. Eu pelo menos não sou.
A minha vida toda eu procurei pessoas. Pessoa, para quem não sabe, é um substantivo e significa criatura humana.
O amor pra mim se dá pelo toque. Pelo cheiro da nuca. Pela disposição do sorriso. Pelo esticar dos dedos do pé no orgasmo. Pelo jeito de piscar. Pelo encaixe das mãos. Pelas batidas do coração. O amor pra mim é atemporal no tempo em que durar. É infinito na sua finitude. É assexuado na sua existência. É amor puro. Assim, sem complicações. E de repente penso que essas coisas de amor, de se dividir com alguém e em alguém, são simples demais. A gente é que complica tudo.
O amor pra mim se encontra na primeira pessoa do plural.
O amor pra mim independe do que se carrega no meio das pernas.
E sem querer ser piegas, mas já sendo há tempos, o amor pra mim depende apenas do que se carrega do lado esquerdo. Átrio, ventrículo, miocárdio. E se tem um órgão que deveria ser levado em conta na hora de julgar a verossimilhança do amor, é este.
E enquanto o mundo grita estupidez e pequenez, eu gozo de um amor tão grande que extrapola a matéria. E morro de um amor tão doce que – tenho certeza – pouquíssimas pessoas já experimentaram.
Amém.

Ensaio sobre a entrega


Se encontraram e fazia sol.
Estavam lá, sentados no mesmo banco. A mão de um segurando um cigarro com peso de três mundos, a mão do outro escrevendo qualquer besteira num desses cadernos que se tem medo de abrir. Rabiscando, talvez. Pouco importa.
O de cá tira um livro da bolsa.
- Que livro é este?
Com olhar assustado pela audácia vestida de naturalidade, responde. – Nelson Rodrigues.
Monossilábico por fora, mas feito um caça palavras por trás dos olhos castanhos tão comuns.
- Eu gosto.
- Eu estou começando a ler agora, na verdade.
- Isso é bom, menino.
O “menino” ficou soando alto nos ouvidos. Me-ni-no.
- Acho que sim.
- A crueza das coisas às vezes dói.
- Em Nelson?
- Em mim. Em você.
Alguns silêncios. Outro cigarro.
- Eu não fumo.
- Que bom pra você.
- Me dá um cigarro?
Alguns vazios.
Cigarro é sempre um ótimo caminho e uma boa desculpa pra esquentar a cama. E a alma.
- Moras aqui perto?
- Aqui na rua de trás.
- Eu moro aqui na rua da frente.
- Vou indo.
- Te levo.
- Mas é completamente oposto.
- Eu gosto.
Caminharam como a sensação de que, pé ante pé, estavam indo muito além do que seus passos ousariam pensar.
- Quer subir?
Perguntou quase que se arrependendo de ter o feito.
- Quero. Tomar café, quem sabe?
Droga. Pensou. Talvez sim. Talvez não. Quando o estado das coisas se chama solidão, qualquer coisa vale.
Sorriram.
O apartamento era pequeno. Escuro. Cheio de livros perdidos pelos cantos. Um deles estava aberto em cima da mesa ao lado do colchão que fazia às vezes do sofá. Nelson Rodrigues. O mesmo Nelson Rodrigues. Reparou isso envergonhado e já começou a pensar em destinos, cartas, búzios e signos. Aquário. Áries, talvez. Câncer, quem sabe. Bobagens que a gente inventa pra se acreditar em destino.
- Quer outro cigarro?
Fez que sim com a cabeça. O de lá se oferece para acender. Não acendeu. Não ainda. Agora sim.
O de cá solta a primeira baforada e eles se olham feito duas crianças cientes de que uma travessura estava por vir.
- Não gosto que me olhes assim.
- Por quê?
- Me arrepia cada centímetro de pêlo.
O de lá sorri de canto de boca e fecha os olhos de leve.
- Feche os olhos também.
- Fecho.
Rosto com rosto, esfregaram-se feito animais apaixonados.
Olhos fechados.
A respiração acelerada acompanha o ritmo do coração, velho de guerra.
Dos corações.
O de cá nunca amou ninguém de verdade, embora tenha amado daquela forma torta que parece o anti-amor, tão cru como as vontades rígidas um do outro. O de lá amou violentamente, só não morreu porque conseguiu enxergar na pouca realidade que lhe resta que brincar de Werther mais machuca do que cansa.
Se esfregavam feito gatos. Procurando na barba, nos pêlos, algo que dissesse qualquer coisa. Sobre eles. Sobre o que sempre falta.
- Me beija.
Beijaram-se.
Boca com boca.
O de lá arrancou sua própria camisa. Depois a calça. Ficou nu. Puro. Leve.
O de cá o seguiu, arrancando toda a roupa também.
Deitaram-se no chão escuro de madeira e se abraçaram, com as pernas entrelaçadas e as mãos dadas.
Beijaram-se mais e mais e mais. Engoliram-se num quase ritual antropofágico.
Corpo, nuca, mão e a tua mente não. Pensou. Pensaram.
Passaram a noite em claro. Beijando-se e tocando-se na esperança de que alguma coisa mostrasse que.
Vinho, cigarro, corpos tantos, salivas, dentes, rostos. Tanta coisa e esse buraco no meio do coração. Bobagem querer preencher.
Madrugada, explodiram. De amor cru, dolorido e doce. Melecaram-se inteiros e nunca mais se viram.
Fazia sol.

Ménage à trois, mon amour


Entrei no quarto escuro de mãos dadas com aquele a quem chamo de amor.
Ela já esperava, sentada em frente ao computador, tentando escolher alguma música na falsa esperança de tirar o cheiro de velório do meu ventre, do nosso ventre.
Podia sentir dentro das minhas próprias entranhas as contrações de prazer que vinham de dentro dela. Coisa de mulher - você me diz. Coisa de mulher - te respondo em total afirmação.
O grande problema em fazer um ménage à trois, é que você perde o controle dos olhares - um dia eu te disse. Simplesmente perde. Meus seios, os seios dela, minha cintura, a cintura dela, o cheiro dos meus cabelos, o cheiro dos cabelos dela. Não se controla mais o olhar. Você não sabe, homem que és, não sabe fazer duas coisas ao mesmo tempo. Não consegue. Ou me olha, ou olha pra ela, com seus cabelos um pouco mal pintados e sua boca bem desenhada.
Desprendimento da carne, desprendimento da matéria. Vamos lá, meus amores. Vamos todos nos lamber enquanto o mundo grita por um pouco de amor, por um pouco de coração. Esqueçamos essas bobagens românticas criadas por algum poeta do século XVI cujo nome esqueci. Esqueçamos das respirações na nuca, das mãos juntas - grudadas de suor ou de esperma. Esqueçamos também dos movimentos cardíacos, da alma que se perde em uma saliva que escorre do canto da boca, do pulmão a se esforçar com tanta respiração contínua, do gozo dividido entre dois corpos e dois "eu te amos" ditos ao mesmo tempo.
Você tirou a minha roupa e começou a me beijar de um jeito diferente. Eu gostei.
Ela veio logo depois e me fez sentir coisas que eu nem sabia que existiam.
Nos possuímos feito três doidos, prestes a serem comidos por formigas carnívoras a qualquer momento. O único fim é o prazer. Doa a alma de quem doer.
O coração tem mais quarto que uma pensão de putas, disse Gárcia Márquez. Eu, no mais baixo escalão da literatura, com dois corpos suados deitados no tapete da sala, digo que o sexo tem mais portas que esta mesma pensão. O maior problema é que depois de abrí-las, não se é mais possível fechar.

Meu coração cede de tanta sede

Há algo dentro de mim que grita intensa e verdadeiramente pelo seu nome. É quase como se em cada pulsar de átrio ou ventrículo existisse uma sílaba de seu nome, um traço de seu rosto, um arrepiar de sua pele.
Quase posso dizer também que é como se até o universo inteirinho, e os planetas com seus anéis ou só com seu solo macio e nu, e o cosmo e os buracos negros e as estrelas – essas testemunhas de nós em tantos céus de alguns lugares (que parecem tantos) – trouxessem no próprio cerne os nossos nomes juntos, a nossa certeza escrita na própria essência, sabe-se lá como.
Ando eloquente. Falo de coisas que eu mal conheço, coloco os astros no meio da nossa história, brinco com os deuses. Zeus, Afrodite... Pouco me importa.
Perdi a sede de literatura, meu amor. Minha sede agora é outra.
Sede de navegar no teu corpo feito um barco português a desvendar mares nunca antes conhecidos, passear por caminhos e me perder em rodamoinhos de ventos que só sua respiração rente a minha pode me proporcionar, encontrar terras imagináveis e outras existentes e nelas hastear uma bandeira.
Tenho tanta sede, meu amor. Agora, do alto da vontade de você em que atiro essas palavras num papel sem vida, morro de sede. Uma morte doce. Sim, uma morte com o cheiro do seu lençol que não me sai da pele. Desse modo, me perco entre seu sorriso, seu dedo meio torto igual ao meu, seu pescoço arrepiado, sua boca vermelha, seu olhar tão adocicado e sorrio no meio das estrelas, do cosmo, dos buracos negros, das galáxias e de todos os deuses, que ao te sentir suspirar cansado e adormecer deitado em meus seios depois de uma noite longa, eu sei, também sorriem de volta para mim.
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